Mulheres coordenam maioria das ocupações por moradia em Curitiba

O movimento de luta por moradia em Curitiba e Região Metropolitana é marcado pela liderança de mulheres. A maior parte da coordenação e organização é feita por elas, responsáveis por negociar políticas, administrar conflitos com os moradores e vizinhos, promover ações sociais e gerir o território.

Isso ocorre, por exemplo, no conjunto de moradia Hugo Chávez, que reúne quatro ocupações: Dona Cida, 29 de Março, Tiradentes e Primavera, concentradas na Cidade Industrial de Curitiba (CIC). A liderança é de mulheres desde 2014, quando as primeiras famílias ergueram suas casas. O complexo reúne mais de 6 mil pessoas.

Na ocupação Tiradentes, a coordenadora Carlinda de Oliveira, conhecida como Carla, é considerada liderança desde as primeiras reuniões de planejamento da ocupação do terreno, quando, junto com famílias e movimentos sociais, levantaram informações valiosas.

Carla lidera a ocupação Tiradentes, com 1.500 famílias. Liderança surgiu desde o começo. FOTO: Giorgia Prates

Descobriram que o lote que iriam ocupar era de propriedade do CNPJ denominado STIRPS, em falência desde 2009. A área tem várias dívidas de IPTU, em um espaço de 145.400 mil metros quadrados, abandonado há mais de sete anos.

Durante a organização da ocupação, Carla se destacou pela dedicação e, principalmente, pelo cuidado com as outras famílias que ocuparam o terreno, junto com ela e seu marido.

“Desde o primeiro dia da ocupação, as mulheres tomaram a frente. Todo mundo trabalha igual, mas foram as mulheres que organizaram as sopas comunitárias, começaram a capinar e erguer as casas, sempre olhando as famílias, cuidando umas das outras”, conta Carla.

A ocupação Tiradentes começou no dia 17 de abril de 2015, com 800 famílias. Hoje é composta por mais de 1.500. Carla cadastrou as famílias e conhece cada pedaço da ocupação. Transparência e rigor são as principais características. Ela organiza as reuniões, coleta informações, participa de movimentos sociais, articula denúncias sobre omissões do poder público, além de tocar o projeto de alfabetização e reforço escolar.

Mulheres à frente da Ocupação 29 de Março

Na comunidade vizinha, Ocupação 29 de Março, a coordenação é feita por Juliana Almeida, 38 anos, ocupante desde que nasceu. A rotina de reuniões com movimentos sociais, participação pública e organização da comunidade se repete há muito tempo.

“Essa é quarta ocupação em que moro e a primeira que coordeno. No começo, muita gente não respeitava as mulheres da comunidade. Mas aí, no dia a dia, perceberam que, sem as mulheres decidindo e fazendo acontecer, isso aqui não vai para frente”, relata Juliana.

Juliana Almeida, ocupante nata, apaga até incêndio na 29 de Marco. FOTO: Arquivo Pessoal

As ocupações Dona Cida e 29 de Março são as mais novas do conjunto denominado Hugo Chávez. Desde março 2018, cerca de mil famílias ocuparam os dois terrenos que pertenciam à prefeitura, ao lado da ocupação Tiradentes. Em dezembro do mesmo ano, a 29 de Março sofreu incêndio criminoso por parte da Polícia Militar, situação que comoveu a cidade e destacou a atuação das mulheres na reestruturação da comunidade.

“O incêndio foi de madrugada. As mulheres acordaram todo mundo, gritaram com policiais para o caminhão poder entrar. Coordenamos as ações de solidariedade e fizemos o enfrento público com as autoridades. Depois disso, os homens nunca mais questionaram a nossa liderança. Mulher sempre dá um jeito de cuidar e impor respeito”, afirma Juliana.

À frente da Ocupação Primavera, outra mulher

Na ocupação Primavera, a coordenação é feita por Vanessa Domingo, casada e mãe de três crianças, liderando a comunidade desde 2019. Primavera é a maior ocupação do conjunto Hugo Chávez e reúne mais de 2 mil pessoas. Passou por diversas coordenações, sendo Vanessa a primeira mulher.

“Eu sempre estive junto às coordenações. Atendia as famílias, tentava deixar esse lugar melhor para todos, mas o machismo é muito grande. Não me consideravam uma líder. Eu era vista só como uma mulher prestativa, que auxiliava. Foram as próprias mulheres que começaram a se dirigir a mim como coordenação, e os movimentos sociais. Aos poucos, os homens foram perdendo espaço”, conta Vanessa.

Vanessa Rodrigues Domingo, líder da ocupação Primavera. FOTO: Sabrina Santos

De acordo com ela, as principais ações da coordenação são organizar o dia a dia e enfrentar as ameaças de despejo. Como a maioria das ocupantes são mulheres chefes de família, é natural que identifiquem outra mulher como liderança.

“A luta pela lombada antes da escola foi uma preocupação das mães, pois somos nós que levamos e buscamos as crianças. Ficamos preocupadas com eles vindo sozinhos com o trânsito na rodovia. Quando falta água e luz, somos as principais prejudicadas, pois nós, mulheres, cuidamos da casa e do bem estar das famílias. Os homens, mesmo quando ficam em casa, não se preocupam tanto”, diz Vanessa.

Ela conta que há uma confluência feminina nas ocupações. “Se, antes, quase não havia diálogo entre as lideranças e os moradores evitavam cruzar as comunidades, hoje eu, a Juliana e a Carla trabalhamos em cooperação, pois a luta é principalmente pelo futuro, por nossas crianças”.

Liderança feminina da Vila Pantarola

A situação de liderança feminina se repete nas ocupações Vila Formosa, Britanite, Pantarola, Moradias do Iguaçu e outras centenas espalhadas por Curitiba.

Márcia Silva é liderança da Vila Pantarola. A ocupação começou em 2021, no bairro Tatuquara, zona Sul de Curitiba, e abriga cerca de 500 famílias. É um exemplo dos dados da pesquisa O Déficit Habitacional Brasileiro é Feminino (ver abaixo).

Mãe, professora da rede municipal e sobrevivente da violência doméstica, Márcia Silva se tornou liderança da Vila Pantarola nos primeiros dias da ocupação. Foi ela quem listou as crianças e os idosos, iniciou a medição de terrenos e procurou os movimentos sociais para fortalecer a luta.

Márcia, da ocupação Pantarola, quer ser reconhecida como ocupante. FOTO: Raissa Melo

Mesmo com sua intensa atuação, ela diz que é apenas uma ocupante. “Eu não sou liderança aqui, muitas pessoas me procuram, mas as lideranças aqui são os homens, porque são eles que as pessoas mais respeitam”.

Ela afirma que, apesar do trabalho árduo das mulheres nas comunidades, a população ocupante e as lideranças de movimentos sociais são muito machistas. Apesar disso, segundo Márcia, a comunidade local, principalmente as mães, enxergam as mulheres como lideranças, incluindo ela. Os homens não reconhecem.

“O que sinto é que as mulheres são mais comprometidas do que os homens. A gente tem mais capacidade de aguentar a luta e cuidar de quem está lutando. Os homens, na maioria das vezes, pensam em si mesmos e, no máximo, em suas famílias”, afirma Márcia.

Na Vila Formosa, novamente mulheres à frente

Juliana Santos Sousa é liderança da Vila Formosa, comunidade que compõe o Bolsão Formosa, complexo das comunidades Ferrovila, Formosa, Vila Leão e Uberlândia. Juliana explica que as demandas das quatro ocupações são as mesmas.

“Cobramos das autoridades para que não haja despejo. Nossos problemas maiores vêm da falta de regularização. A gente sabe que os atendimentos nas ocupações são difíceis: uma consulta no postinho, atendem com aquele discurso, como você não tem endereço, eu estou fazendo um favor em atender você… Como a luz não é regularizada, corremos o risco de curtos-circuitos. Falta banho quente, luz elétrica, eletrodomésticos queimam. Isso tudo dificulta, principalmente, para as mulheres que cuidam da casa e da família que fica doente com banho frio”, afirma Juliana.

Juliana tem 47 anos e mora com o marido e a sogra. Ela destaca a luta de muitas famílias pela construção de banheiros e relata os problemas dos banheiros coletivos nas comunidades do Bolsão.

Da esquerda para direita: sogra de Juliana Santos Souza, ela, marido e vizinhos. FOTO: Arquivo Pessoal

“Muitas vezes, a pessoa, no terreno, não tem banheiro, e usa os banheiros coletivos, que, no começo das ocupações, sempre tem e acaba ficando ali. Só que é um espaço precarizado, sai cara a manutenção. As ocupações não têm como arcar com isso, porque não temos nem pras nossas casas”, explica Juliana.

Ela também destaca que as cozinhas comunitárias fortalecem os laços de fraternidade na comunidade e se tornam fonte de renda para muitas mulheres.

“É nas cozinhas comunitárias que acontecem as trocas de vivências, os cursos e a geração de renda, que leva autonomia e cuidado para essas mulheres, refletindo na comunidade toda. Mulheres trabalham melhor para a comunidade porque se preocupam mais. As melhorias da ocupação normalmente vêm da cabeça delas”, afirma Juliana.

Mulheres são maioria sem moradia

A pesquisa de doutorado O Déficit Habitacional Brasileiro é Feminino, da pesquisadora Raquel Ludermir, argumenta que a relação entre violência doméstica e déficit habitacional é um problema social e urbano invisibilizado. Ele afeta uma em cada quatro mulheres no Brasil e na América Latina, principalmente negras e pobres.

Ainda segundo a pesquisadora, a grande maioria das mulheres acaba saindo de casa para escapar de violências, mesmo que provisoriamente. Recorrem a casas de familiares ou amigos (“coabitação involuntária”, nos termos do indicador do déficit FIP).

Outra saída é arcar com custos de aluguel que, por vezes, representam um ônus com o qual as mulheres não conseguem arcar.

Recorte de gênero explica déficit habitacional

De acordo com Maria das Graças Oliveira, presidenta nacional da União por Moradia Popular, a falta de moradia afeta o acesso das mulheres a outras políticas públicas.

“Realizar o recorte de gênero na questão habitacional ajuda a entender que as condições de moradia das mulheres tendem a ser ainda mais precárias do que a média. E que isso tem repercussões na saúde, educação e bem-estar”, afirma Maria.

Ainda segundo a presidenta, o desmonte das políticas urbanas de habitação no Brasil durante a pandemia agravou a situação em mais de 100%.

“Em 2021, por exemplo, mesmo durante a pandemia, o governo federal cortou 98% dos recursos para a produção de moradia para a população de baixa renda, enquanto a população em situação de rua, os despejos, e as remoções forçadas não pararam de crescer, mesmo com as medidas do Supremo Tribunal Federal”, destaca Maria.

Iniciativa Despejo Zero, em Curitiba, no dia 7 de março, foi uma das maiores do Brasil. FOTO: Raissa Melo

Agravamento na pandemia

A atuação das mulheres em ocupações de moradia se tornou ainda mais evidente durante a pandemia de covid-19, com o agravamento da fome e desemprego e, também, por causa da criminalização de movimentos sociais.

“Com a pandemia, muitas famílias que têm crianças nas escolas não conseguiam acessar aulas online, nem as atividades. Eu vi essa dificuldade e me propus a ir até a escola buscar as folhas impressas. Também vi o aperto que todas as famílias estavam passando. Tem coisas que a mulher faz que é trabalho, mas não é visto assim. Porém, quando falta ou tem uma crise como a pandemia, os familiares e a comunidade começam a sentir falta. Mesmo assim, não valorizam, nem respeitam as mulheres”, analisa Carla.

Mulheres lideram aqui e acolá

De acordo com o Plano Setorial de Habitação da Cidade de Curitiba, apresentado em 2022, a cidade possui um déficit habitacional de 79.949 domicílios.

Os números da Cohab revelam que há 453 áreas de ocupação irregular na cidade, com 49.164 famílias vivendo sem rede de água e esgoto, asfalto e energia elétrica.

Segundo os dados da Fundação João Pinheiro (FIP), o déficit habitacional brasileiro também é uma questão de gênero, que acomete – principalmente – as mulheres negras.

 

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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