Por que chamar um negro de negro pode ser uma forma de racismo?

Não seja racista, seja antirracista, seja do bem, uma sociedade plural não faz mal a ninguém- Foto: Silvia Izquierdo/ AP

Pierre Webo, Luiz Eduardo, Gerson e o Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Muito se tem discutido sobre o racismo e podemos colocar 2020 como o ano da gota d’água – espero que historiadores encontrem um nome melhor que ajude os alunos a decorar na hora de responder uma futura prova de história.

O caso do George Floyd, o menino Matheus, as vitórias em reality shows, a saga do livro Torto Arado pelo Brasil, o reconhecimento de Emicida como um intelectual das artes, da comunicação e do mundo empresarial, os diversos adiamentos de jogos esportivos por conta de casos de racismo… foi um ano para levantar o braço direito e não abaixar mais.

Como qualquer assunto muito falado, há uma parcela que afirma que “racismo agora é moda”. Etmologicamente, moda vem do latim modus que significa comportamento, costume. Logo, se você afirma que o racismo está na moda, você está afirmando que o racismo faz parte do comportamento e do costume social, o que nós concordamos. Só não posso concordar com o AGORA da sua frase, pois o racismo sempre esteve aí, a questão é que AGORA ele não está sendo mais aceito e se isso de alguma forma te incomoda, tenho que te dizer, você é racista.

Três casos no esporte trouxeram uma questão muito interessante; quais são os formatos do racismo? Existem vários e é aí onde as pessoas discutem falando muito e ouvindo pouco. Chamar um negro de negro é racismo? Depende, vamos entender o que aconteceu.

Na partida entre PSG e Istambul, o 4° árbitro Sebastien Coltescu avisou para o árbitro principal que o camaronês Pierre Webo, membro da comissão técnica do Istambul, deveria tomar cartão amarelo. Ao fazê-lo, segundo relatos, falou que o cartão era para o negro. O jogador Demba Ba questionou: “Você nunca diz: ‘este cara branco’, você diz ‘este cara’. Então me ouça, por que quando você menciona um cara negro você diz ‘este cara negro’?”

Demba Ba discute com o quarto árbitro após comentário caso de racista em PSG x Instanbul Basaksehir na Liga dos Campeões- Crédito: FRANCK FIFE / AFP

O caso do menino Luiz Eduardo segue essa mesma linha. O jovem de 11 anos estava participando de uma partida de futebol amador do torneio Caldas Cup, quando o técnico do time adversário começou a usar termos como “Fecha o preto, aí” “Marca o preto”. Luiz, apesar da vitória, saiu de campo em prantos ao perceber que essas falas eram instruções para os marcadores adversários terem mais atenção com ele. “O cara falava assim ‘Fecha o preto aí, ó!’ Aí eu aguardei para falar no final com os pais. Falou um ‘tantão’ de vezes” afirmou o menino em uma de suas redes sociais.

Gerson, jogador do Flamengo e reconhecido por ser uma pessoa de poucas palavras fora do campo, denunciou um caso de racismo que sofreu durante a partida contra o Bahia. O colombiano Ramirez havia proferido a frase “Cala a boca, negro”. O técnico do Bahia, também durante o jogo, chamou a revolta de Gerson de malandragem, por achar que o jogador estava tentando esfriar a partida. Mano Menezes foi demitido na mesma noite e o jogador Ramirez está afastado até que as investigações sejam feitas. “O “cala boca, negro” é justamente o que não vai mais acontecer”.

Gerson comentou que ouviu “Cala a boca, negro”, do jogador do Bahia- Foto: Jorge Rodrigues / Agência Estado

Todos os casos estão sobre investigação, por isso temos que tratar como suposição, mas em casos de racismo, a voz da vítima fala mais alto, afinal, ninguém que não sofreu racismo quer passar por esse constrangimento. Imagina-se que nenhum negro – toda generalização é falsa, eu sei – inventaria algo do tipo pra se promover ou para prejudicar o outro.

Ter a ciência de que você foi descriminado pela cor é algo muito doloroso. Dói tanto que o primeiro passo que você faz na sua cabeça é negar aquilo e só depois percebe que precisa lutar para que atitudes desse tipo não mais aconteçam.

Por que chamar um negro de negro pode ser racismo?

Vou recorrer ao racista Monteiro Lobato para explicar isso.

Trecho das reinações de narizinho

A Pescaria

“… Narizinho jogou a vara em cima do leitão, que fez coim!, e foi correndo para o rio, com Emília de cabeça para baixo no bolso do avental.

Lá teve uma ideia: deixar a boneca pescando enquanto ela ajudava a preta.

– Tia Nastácia, faça um anzolzinho de alfinete para Emília. A coitada tem tanta vontade de pescar…

– Era só o que faltava! – respondeu a negra, tirando o pito da boca. – Eu, com tanto serviço, a perder tempo com bobagem.

– Faz? – insistiu a menina. – Alfinete, tenho aqui um. Linha, há no alinhavo da minha saia. Vara não falta. Faz?

A negra não teve remédio…”

Monteiro Lobato era declaradamente racista, eugenista e tinha planos em criar uma sociedade brasileira “puramente” branca. Perceba que na sua narrativa, a neta da Dona Benta pode ser chamada de Narizinho e menina, enquanto, nessa passagem, Tia Nastácia só é chamada de negra ou preta.

Uma das formas de racismo é reduzir o negro ao fato dele ser somente negro, trazendo em si uma herança colonial da escravidão onde não interessava se você tinha nome, se estava livre, se tinha pai, mãe, filho, filha… você era o negro ou a negra e, consequentemente, alguém que poderia ser escravizado.

Perceba também que ele não se refere a Narizinho como a menina branca, mas só como a “menina”, então por que Tia Nastácia não poderia ser, por exemplo, “senhora”?

“Lá teve uma ideia: deixar a boneca pescando enquanto ela ajudava a senhora.”

Os casos ocorridos nos últimos meses apresentam o tipo de racismo que iguala todos os negros somente pelo fato deles serem negros, roubando uma identidade construída por anos e que deve ser muito valorizada. A questão é que ainda há muita atitude racista no campo da normalidade e algumas pessoas nasceram tão entranhadas nesses conceitos que sequer percebem que são racistas.

Talvez – não estou passando o pano – seja o caso do 4° árbitro e do técnico, diferente do caso de Ramirez, que tinha em sua frase algo ofensivo, logo, usar a palavra “negro”, em sua cabeça, era uma forma de potencializar essa ofensa. Você não tem como imaginá-lo dizer “Cala boca, lindo”, “Cala boca, pessoa maravilhosa” e etc.

Se não sabemos onde estão todos os nossos racismos, o primeiro passo é ouvir e entender quem se sente discriminado. Achar, de antemão, que aquilo é frescura ou praticar a empatia errada, onde você se coloca no lugar do outro ainda sendo você, em nada vai ajudar.

Mudança de comportamento

Entender que vivemos uma estrutura social racista vai te fazer perceber que pequenas atitudes são discriminatórias e que você não irá perder nada em parar de agir dessa forma. Já que sou do tipo que aponta o dedo e ajuda na mudança, aí vão três “brincadeiras” que devem ser evitadas:

1° – Achar que todo negro é parecido: Sabe aquele seu amigo negro, alto e rasta, por exemplo. Se você vive dizendo que viu alguém negro, alto e rasta na rua e achou que era ele, você está sendo racista. De novo, essa é uma forma de tirar a identidade do negro, dizendo que todos são iguais, só por terem características comuns. Seria como ver um branco, gordo e careca e achar que todos eles são parecidos. É o mesmo tipo de ofensa que fazemos com orientais e que nós mesmos sabemos que é errado.

2° – “O barbeiro tem família”: Essa frase é usada quando alguém de cabelo crespo resolve deixá-lo crescer. Para isso, é necessário não cortar, mas sempre vem alguém te informar que o barbeiro tem família. “Pelo visto, o racismo também”, afinal, essa frase nunca é proferida para alguém de cabelo liso que ostenta madeixas na linha da cintura. Já podemos tirar essa do nosso repertório também.

3° – “E aí, Negão!”: O termo “Negão”, “minha nega”, “meu preto” carrega bastante carinho em seu significado, mas não são todos os negros que gostam de ser chamados assim, alguns preferem ser chamados pelo nome. Muita gente reduz a discussão de termos a “preto ou negro?”… é muito mais complexo que isso. É necessário ver contexto, intimidade, confiança, será que a pessoa fica à vontade ao ser chamada assim? Em casos como esse, a percepção do todo é importantíssima.

Ainda há uma caminhada longa contra o racismo, mas passos importantes já foram dados e agora ninguém quer voltar. “A gente só briga pra poder parar de brigar” afirma Emicida e ele nunca esteve tão certo. Não seja racista, seja antirracista, seja do bem, uma sociedade plural não faz mal a ninguém. #WakandaForever #FelizNatal

*Este texto trata-se de uma opinião do autor.

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Anderson Shon
Graduado em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela Faculdade da Cidade do Salvador, Anderson Shon, atualmente, é professor do Centro de Educação Ávila Góis, professor - Canto de Estudo, professor do Instituto Bom Aluno da Bahia e professor - Educandário Helita Vieira. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Anderson Mariano é escritor e professor. Lançou o livro Um Poeta Crônico no final de 2013 e, desde lá, já apareceu em coletâneas de poesia e de contos. Já ministrou oficinas em diversas feiras literárias da Bahia e é figura certa nos saraus de Salvador. É apaixonado por literatura e produz contos para abastecer o andersonshon.com. Em 2019, lançou o Outro Poeta Crônico, continuando sua jornada no mundo da literatura. Além de escritor, Anderson Shon é professor de redação e escrita criativa, sendo o professor com maior número de alunos premiados no Concurso de Escritores Escolares e, em 2018, lançou um livros de contos e poesias com os alunos do colégio estadual Conselheiro Vicente Pacheco do bairro de Dom Avelar. Anderson entende que ser professor não é uma profissão, é uma missão e que os livros são os melhores amigos que um estudante pode ter.