Para advogada que atuou contra chacinas da Candelária e Vigário Geral, houve “grande retrocesso”

Advogada Cristina Leonardo
Imagem de outdoors espalhados pelo Rio de Janeiro relembrando a chacina de Vigário Geral

Hoje é uma data triste, mas precisa ser lembrada: há 30 anos, na madrugada de 29 de agosto de 1993, policiais consumaram a chacina iniciada na noite anterior na favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro, um dos crimes mais brutais da história de violências contra favelas no Brasil.

Após a morte de quatro policiais militares na praça Catolé do Rocha, cerca de 40 homens encapuzados invadiram a comunidade de Vigário Geral e mataram 21 pessoas.

A chacina ocorreu um mês após outro crime coletivo escandaloso, a chacina da Candelária, que aconteceu no dia 23 de julho de 1993.

Naquela noite, dois carros com placas tampadas pararam em frente à Igreja da Candelária, na Praça Mauá, centro do Rio de Janeiro, e de dentro dele saíram disparos contra moradores de rua que estavam dormindo, vitimando oito pessoas, a maioria adolescentes.

Homenagens às vítimas, hoje e sempre

Como parte das ações que marcam a memória dos 30 anos das duas chacinas, a Associação das Vítimas de Vigário Geral enviou ofício ao atual prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, para uma parceria em memória das vítimas de 1993.

Pediram a substituição do monumento em frente à Igreja da Candelária, o atual está bem danificado. Quanto a Vigário Geral, o documento requer, por desejo dos familiares das vítimas, que seja construído um púlpito na Praça Catolé do Rocha.

Querem ainda que uma placa com o nome das pessoas assassinadas seja doada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A placa será inaugurada hoje, entre as 15 e 16 horas.

Missa marca data

Hoje, haverá missa pelas vítimas e familiares da chacina de Vigário Geral, às 19h30, no Centro Cultural Waly Salomão, em Vigário Geral. A cerimônia será presidida pelo cardeal Orani João Tempesta.

Também para relembrar a data, a Agência de Notícias das Favelas (ANF) entrevista Cristina Leonardo, advogada que atuou nas chacinas da Candelária e Vigário Geral. Seu trabalho obstinado ajudou as famílias das vítimas a receberem indenizações e a indiciar os suspeitos. Ela nos concedeu a entrevista a seguir.

Como começou sua atuação na chacina da Candelária?

Eu fazia uma pesquisa em relação a crianças e jovens de rua, eu e uma equipe multidisciplinar. Todas nós tínhamos 26, 27 anos, éramos novas, e era uma coisa muito nova, principalmente que nós éramos cinco mulheres, né? Jovens, voltadas para essa questão de pesquisa na rua, então a gente trabalhava à noite, distribuía camisinha na Praça Mauá, ali perto da Candelária. A gente instruía os jovens, as crianças da importância de se proteger, do perigo das doenças sexualmente transmissíveis.

monumento da igreja da Candelária
Familiares querem substituir placa diante da Igreja da Candelária

Foi nessa época que conheceu o carnavalesco Joãozinho 30?

Sim. Começamos a perceber que, através da cultura do Carnaval, a gente podia transformar a vida daquelas crianças. Algumas delas eram homossexuais, começaram a trabalhar fazendo fantasia no galpão que tinha ali na Praça Mauá, que hoje é aquela Ação da Cidadania. Muitas delas conseguiram trabalhar nas escolas de samba, aquela coisa toda. Eu ajudei a criar, em conjunto com Joãozinho 30 e a Flor da Manhã, projeto criado por ele, a primeira escola carnavalesca mirim, que deu origem a todas as escolas mirins do Rio de Janeiro. Tanto é que eu sou madrinha dessas crianças no Carnaval.

Mas o projeto fechou, não foi?

Fechou, e muitas das crianças se dividiram. Algumas foram para a Praça Mauá, outras ficaram debaixo do viaduto da Candelária. Vieram muitas crianças da favela Rato Molhado, porque era o início do tráfico, que estava começando a expulsar as pessoas de casa. Com isso eu conheci algumas das crianças que morreram na Candelária e que moravam lá.

A Glória Maria entrevistou vocês na época?

Ela fez uma entrevista com a Yvonne Bezerra de Mello sobre gente que estava morando na praça. Percebemos que todas aquelas crianças que estavam na entrevista, que estavam ali dormindo, eram oriundas da Flor da Manhã. Aí, fomos na Candelária para reconhecer checar se eram elas mesmo. Isso já foi quase nas vésperas da chacina, uns dez dias antes. Conversando com as companheiras de pesquisa, falei: a gente tem que documentar as crianças para mandar pro Liborni Siqueira, que era o juiz da infância e Juventude na época, e para o Siro Darlan, era da área de infrações cometidas por crianças em situação de risco. E o que nós fizemos? Nós fizemos um aniversário, inclusive se você entrar no jornal O Globo, tem esse vídeo, e ele serviu de prova para o processo da chacina da Candelária. Nós fizemos um aniversário documentando todas as crianças.

Ato interreligioso relembra 30 anos da Chacina da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. FOTO Tomaz Silva/AB

E como foi a situação no dia da chacina?

Depois que a gente fez esse aniversário, dois dias depois, aconteceu a chacina e oito meninos morreram. Quem estava com toda a documentação era eu, porque nós já tínhamos entregado uma parte para o juizado, e eu terminei de mandar o vídeo para o Liborni Siqueira. Na delegacia, eu conhecia o delegado por causa dos desaparecidos da Praça Mauá, e como eu estava com todos os documentos, ele veio na porta e falou ‘Cristina, mas o que você está fazendo aqui?’ Eu falei: estou com documento das crianças que morreram e uma das sobreviventes, que já morreu logo depois da chacina, começou a falar ‘a tia do documento, a tia do documento’. Aí deixaram eu entrar na delegacia e acabei acompanhando as vítimas da Candelária como advogada.

Como você avalia o desenrolar do caso da Candelária e de Vigário Geral?

Tanto na Candelária, quanto em Vigário Geral, as punições e os suspeitos, os acusados, os criminosos, como você quiser colocar, não foi contemplada a pena, não foram presos todos os que deveriam ser presos. No caso de Candelária, que houve uma história de um dos presos que falou que era evangélico, confessou que matou, o que quer dizer? Houve uma articulação interna, mas de qualquer maneira a gente teve, pela primeira vez, num caso de grande repercussão, condenações, e isso ajudou muito a mostrar a responsabilidade do Estado.

E sobre Vigário Geral?

Os primeiros trinta que foram denunciados estavam envolvidos, só que apareceu uma articulação dos próprios criminosos e eles apresentaram uma fita ao Ministério Público acusando outros. É assim que eles fazem: apontam outras pessoas, outras pessoas entram no caso, dentro do processo, no final todo mundo é absolvido, é uma estratégia. Se nós conseguimos mais algumas vitórias de condenação, não foram muitas, mas essas condenações ajudaram, repito, a provar a culpabilidade do Estado e os familiares terem direito a indenização.

Placa que será inaugurada hoje com os nomes de todas as vítimas da chacina de Vigário Geral

Então foi feita justiça?

Foi feita justiça pra época, foi o início de uma grande mudança no sistema judicial. Eles reconheceram que a polícia era responsável, materializou os grupos de extermínio que hoje em dia são a milícia. Mas conseguimos as indenizações, e conseguimos essa pensão que todos os familiares recebem. Houve um acordo internacional que todos os parentes das vítimas iriam receber essa indenização.

O que o caso gerou na sociedade?

Candelária-Vigário Geral são marcos na mudança do sistema de justiça e das mobilizações sociais, porque através dessas chacinas vieram os grandes movimentos, vieram Casa da Paz, Viva Rio, veio Afroreggae e vários outros. As favelas conseguiram se organizar, a sociedade começou a ter um olhar diferente sobre a gravidade desses crimes dentro das comunidades. Só que, conforme foram passando os anos, as leis que foram criadas e as oportunidades, como na área social, começaram a se perder. E com o governo passado, tivemos um retrocesso muito grande.

E daqui para frente?

Para retomar toda essa conquista, vai ser a longo prazo, porque ainda existem resquícios, principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo. Você está vendo aí que o governo, é um governo que ainda está comprometido com essa situação de violência nas fora e, principalmente, dentro das comunidades. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal determinou que as polícias entrassem com as câmeras e, até agora, não foi cumprido isso. Vivemos em terra de ninguém. No Rio de Janeiro, é mais grave do que 30 anos atrás. Foi um grande retrocesso.

Púlpito na Praça Catolé do Rocha, local emblemático da chacina de Vigário Geral

Em nível nacional, como devemos nos posicionar?

As favelas devem se unir, mostrando poder de articulação para cobrar do Governo Federal que haja uma discussão ampla e inclusiva no Brasil sobre o atual modelo de policiamento nas favelas, que vivem um círculo vicioso de violência letal, com um impacto dramaticamente crescente nas populações trabalhadoras, pobres e excluídas de todos seus direitos garantido pela Constituição. Temos que dar um basta nas mortes do nosso povo.

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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