Ilha de Deus é território de pesca e resistência nas águas do Recife

Vista aérea da Ilha de Deus, com a ponte Vitória das Mulheres no centro. É possível ver a vegetação de mangue que a própria comunidade reflorestou no entorno da ilha.

A Ilha de Deus é uma comunidade tradicional pesqueira localizada na zona sul do Recife, entre os bairros Imbiribeira e Pina. O território compreende um estuário, que é o nome dado ao encontro do rio com o mar, e está em meio a um dos maiores manguezais em área urbana do mundo, na união dos Rios Pina, Jordão e Tejipió, com vegetação de mangue preservada em aproximadamente 212 hectares de área total. Cerca de 2 mil pessoas moram na Ilha de Deus.

Ilha de Deus: ponte Vitória das Mulheres e, ao fundo, prédios de Pina e Boa Viagem. FOTO: Núcleo de Comunicação Caranguejo Uçá

A Ilha de Deus surgiu nos anos 50, e sua inserção entre os rios Pina, Jordão e Tejipió é fundamental para a realidade cultural, social, política, ambiental e econômica do território, que vive tradicionalmente da pesca e da catação e coleta de marisco e sururu, além da criação de camarão, com viveiros artesanais no entorno da ilha.

Foi a partir de 2007 que a Ilha de Deus passou a ser estruturada de forma a comportar as famílias e a vegetação nativa em harmonia, iniciando-se o processo de urbanização da comunidade. Ela foi resultado da organização e da consciência de pertencimento gerada entre os habitantes.

Uma ilha estruturada pelas moradoras e moradores

A formação inicial da Ilha de Deus se deu com várias palafitas. O deslocamento entre a ilha e o continente era feito apenas de barco ou nadando, e não havia saneamento básico nem estrutura que favorecesse o desenvolvimento da comunidade.

Mas os moradores começaram a luta pelo direito ao território e, consequentemente, pela regularização fundiária, que até hoje é necessária e se torna cada vez mais urgente. A própria comunidade da Ilha de Deus iniciou a estruturação das moradias.

Eles fizeram tudo coletivamente a partir dos recursos aos quais tinham acesso à época. Inclusive o aterro de algumas áreas alagadas da ilha foi realizado com as conchas do sururu, material natural e resistente que se acumula a cada catação do molusco.

As mulheres da Ilha de Deus são a resistência. FOTO: Junior Cardeal/ANF

Vale salientar que a Ilha de Deus conseguiu manter sua identidade tradicional pesqueira graças à luta das mulheres da comunidade por garantia de direitos e políticas públicas direcionadas para o território. Com muita perseverança, puderam resistir às investidas de empreiteiras que desejavam e ainda desejam o território.

Quem são os pioneiros da Ilha de Deus?

A parteira Albertina foi uma das mais antigas moradoras da Ilha de Deus, conhecida por facilitar o nascimento de 375 crianças. Naturalmente, era muito querida e admirada pelas moradoras e moradores.

Outros trabalhos fundamentais eram realizados por moradores, como seu Zacarias. Ele fazia a travessia dos moradores com sua baiteira (embarcação característica dos rios do Recife, podendo usar remo ou motor) enquanto ainda não havia ponte. Durante muito tempo, foi a única ligação entre a Ilha de Deus e o continente.

Outro nome que os moradores não esquecem foi Zé Porquinho, considerado o primeiro morador da Ilha de Deus. Seu nome de batismo é José Alves da Silva, nascido em 14 de março de 1943. Zé Porquinho, como ficou conhecido na comunidade, ganhava a vida como pescador. Também era pedreiro e eletricista e ficou famoso como brincante cantador de coco.

Dona Albertina, Seu Zacarias (esquerda) e Seu Zé Porquinho (direita). FOTO: Núcleo de Comunicação Caranguejo Uçá

Histórias dos pescadores são memórias reais de lutas

João, 55 anos, é pescador da Ilha de Deus desde a década de 1980, e prefere não citar seu sobrenome. Para ele, o processo de urbanização e reconhecimento do território e da atividade pesqueira desenvolvida são frutos da resistência da própria comunidade.

“Faz parte da preocupação com as nossas atividades, porque nós somos pescadores, então também temos direito a uma moradia digna. Se você visse a Ilha de Deus na década de 1980, aqui não tinha a urbanização que você vê agora, essa organização de viveiros que a gente tem agora”.

João, pescador: trabalho é manual e resistência é a mola. FOTO: Junior Cardeal/ANF

O pescador relata como a atividade econômica, diversificada na pesca de várias espécies, se voltou para o camarão. “Antigamente, a gente criava mais peixe. Hoje, a gente cria camarão. Tem umas comportas ali mais modificadas, que é pra acompanhar o movimento, o desenvolvimento do camarão. Não tem nada de maquinário, aqui é tudo manual, é tudo no cacete mesmo. A gente trabalha cavando, o que tem aqui é a nossa energia, nossa saúde e a resistência de trabalhar, que é mola”.

A virada para a criação de camarão

Foi nos anos 90 que a comunidade, após um desastre ecológico nas águas, se reinventou com a criação de camarões. Josias Pedro, 60 anos, conhecido como Jó, mora na Ilha de Deus há 43 anos. Seus pais e avós habitavam, mas foram retirados na década de 1950 pelo movimento dos mocambos, indo para o bairro da Mustardinha, onde continuaram vivendo da pesca.

Em 1963 Jó nasceu e, em 1981, chegou à Ilha de Deus, onde vive até hoje. “Com as habilidades de pescador, eu me adaptei fácil. Pesquei muito nos anos oitenta, muito camarão, muito siri, muito peixe. Aqui era uma área rica em tudo isso. O viveiros não eram viveiros de camarão, eram viveiros de peixe, a piscicultura era muito forte na comunidade”, relata.

Josias, pescador e criador de camarão da Ilha de Deus, e sua neta. FOTO: Junior Cardeal/ANF

Jó conta que em 1983 houve o derramamento de uma “calda”, como ele chama, que era o vinhoto das usinas de cana de açúcar, além de outros resíduos industriais. Isso afetou drasticamente as águas dos rios, causando danos até a atualidade.

“Eu posso dizer que dizimou o estuário todo, matou tudo, você não via um guaru. O povo teve que sair pedindo comida na rua. Foi um crime hediondo cometido contra o nosso manguezal, que alimenta muita gente”, conta Jó.

“Em 1993, um cidadão chamado Lopes chegou aqui e trouxe a cultura do camarão introduzido, da espécie vannamei. Ninguém conhecia e eu nem tinha viveiro. Cinco anos depois da inserção desse novo método no território, eu passei a ter viveiro e estou até hoje”, finaliza Josias Pedro.

Mulheres à frente de transformações fundamentais

Nas décadas de 1980 e 1990, o território da Ilha de Deus vivia ainda a situação de total abandono por parte do poder público, que não voltava os olhos para a comunidade, deixando os moradores por muito tempo vulneráveis à criminalidade. A ilha chegou a ser usada como esconderijo de fugitivos.

Devido à essa condição, por muito tempo a comunidade tradicional pesqueira foi conhecida de forma ofensiva como Ilha Sem Deus. A forma negativa como o território passou a ser conhecido gerou incômodo nos moradores, que intensificaram sua mobilização e cobrança de iniciativas do poder público. A grande movimentação foi liderada pelas mulheres.

Após décadas de invisibilidade, em 1986, os próprios moradores, em organização comunitária, construíram a primeira ponte conectando a ilha ao restante da capital pernambucana, em madeira. Ela possibilitou a travessia de forma mais fácil para pedestres, principalmente para as crianças irem à escola. Antes, elas tinham que tirar os sapatos e atravessar o mangue.

A luta pelo reconhecimento e urbanização do território teve início com os primeiros moradores da Ilha de Deus. Eles foram cruciais para o fortalecimento da identidade da comunidade, evitando que desistissem da luta pelo território.

Marcos da urbanização da Ilha de Deus

As mulheres da Ilha de Deus, pescadoras e marisqueiras, resistiram na reivindicação dos direitos e, em 2007, teve início o processo de urbanização da Ilha de Deus. A comunidade solicitou inicialmente os serviços básicos de saneamento e energia elétrica.

Em seguida, veio a construção das casas de alvenaria e a retirada das palafitas. As casas de alvenaria foram construídas em coletividade pelos moradores, que se dispuseram a colaborar para a construção do jeito que a comunidade desejava.

Aterro da margem do córrego feito de conchas do marisco. FOTO: Junior Cardeal/ANF

Em 2009 veio, finalmente, a ponte de concreto, possibilitando a passagem de veículos e representando um marco no avanço da comunidade e no fortalecimento dos processos de convivência e resistência liderado pelas pescadoras e marisqueiras.

A ponte que dá acesso à Ilha de Deus é um símbolo dessa luta. Por isso, seu nome é Ponte Vitória das Mulheres, em homenagem ao esforço coletivo das guerreiras da ilha em defesa do território e de seus direitos como comunidade tradicional pesqueira. A ponte tem 214 metros de comprimento.

Pesca com equilíbrio do ecossistema

Atualmente, a Ilha de Deus é um dos últimos manguezais urbanos do Recife, exemplo de resistência cultural. 80% da população vive exclusivamente da pesca artesanal e 20% têm a pesca como atividade secundária.

Se considerarmos apenas duas das iguarias da pesca artesanal, como o sururu e o marisco,  movimenta-se anualmente mais de dois milhões de reais.

Segundo o Cadastro de Pescadores Artesanais do Litoral de Pernambuco, realizado em 2019 pela Secretaria de Meio Ambiente, Sustentabilidade de Noronha (SEMAS), com informações geradas pelas associações e colônias de pescadores, atuam no estado cerca de 11.367 pescadores e pescadoras artesanais.

Preservação da vegetação de mangue é prioridade na Ilha de Deus. FOTO: Junior Cardeal/ANF

A pesca artesanal inclui pescadoras e pescadores, catadoras de sururu, marisqueiras e ostreiros. Representa uma grande potência econômica para o estado de Pernambuco: cerca de 70% do pescado consumido no estado origina-se da pesca artesanal.

Mesmo dispondo do território e das condições para exercer a atividade pesqueira, pescadoras e pescadores da Ilha de Deus, assim como de outras comunidades tradicionais pesqueiras, lutam pelo reconhecimento e valorização da profissão, pela preservação das águas e dos manguezais e pela manutenção do ecossistema em equilíbrio.

Riqueza cultural é outro patrimônio da Ilha de Deus

A comunidade se tornou um território de riqueza multicultural, com diversas atividades artísticas que constroem o ser político em defesa do seu território, desde maracatu, teatro, audiovisual, rádio comunitária, cineclube, formações, rodas de diálogo a produções de filmes e realização de eventos.

A maioria das atividades artísticas e culturais acontecem graças à Ação Comunitária Caranguejo Uçá (ACCU), movimento de resistência que emergiu na Ilha de Deus em 2002, unindo jovens da própria comunidade e de outras localidades da região metropolitana.

O objetivo é promover conscientização e formação do pensamento crítico, cultura, lazer e cidadania aos seus moradores. A sede da Ação Comunitária Caranguejo Uçá possui uma estrutura física própria, de 450 metros quadrados.

Viveiro de reprodução permite produzir respeitando a natureza. FOTO: Junior Cardeal/ANF

Nela funcionam anfiteatro, rádio comunitária, estúdio de gravação e edição de vídeos, biblioteca, sala de vivências, copa e banheiros. É na sede onde também funciona o Núcleo de Comunicação Caranguejo Uçá, que produz diversos conteúdos para a mídia independente.

Na sede da Ação Comunitária Caranguejo Uçá, acontecem diversas movimentações culturais e produções de iniciativas e projetos, como o Jornal da Maré, a Ciranda de Mulheres, a Rádio Boca da Ilha, o Teça no Mangue, o Maracatu Nação da Ilha e o Brechó Cultural.

Uma rádio comunitária na Ilha de Deus

A Rádio Boca da Ilha é a rádio da comunidade, sendo transmitida da sede da Ação Comunitária Caranguejo Uçá para toda a ilha com as caixas de som instaladas nos postes, inclusive nas áreas de viveiros de camarão.

Com grade de programação diária, começa a transmitir às 6 horas da manhã com o Programa da Véia, musical e notícias, apresentado por Garotinho. No turno da tarde, existem programas com temáticas distintas, como o Som e Ação, programa de entrevistas e conversas abrangendo temáticas sócio-políticas e cultura, apresentando por Edson Fly.

A Rádio Boca da Ilha também transmite o programa Marolas: Uma Onda de Notícias, noticiário sobre comunidades tradicionais e política, apresentado por Israel Uçá e Rodrigo Lima. A produção dos programas é realizada por Hamilton Tenório.

Biblioteca da Ação Comunitária Caranguejo Uçá. FOTO: Junior Cardeal/ANF

Nos fins de tarde das segundas-feiras, o programa AnimAção, com o Tio Barbadão, ocupa as ondas do rádio na Ilha de Deus, com a participação da criançada do território em conversas instigantes, apresentado por Edson Correia, que é professor do bairro vizinho, Afogados.

Na Ilha de Deus havia uma creche, que foi demolida há quase dez anos com a promessa de ser construída outra, mais moderna, só que até hoje ela não foi feita. O pedagogo e multiartista Edson Correia, residente na comunidade há dois anos, conta que conheceu o local por meio da Escola Municipal Capela de Santo Antônio, que funciona na Ilha.

“Quando tem um encontro, os adultos ficam nos seus ciclos, nos seus debates, e eu estou sempre junto com as crianças. No programa de rádio, a cada edição a gente tem um tema, e nele a gente trabalha conteúdos da educação formal e da educação ancestral”, conta Edson.

Formação de mulheres para continuarem na luta

A Ciranda de Mulheres é um projeto de formação política e de autocuidado da Ilha de Deus, voltado do território e de fora dele que queiram participar das dinâmicas, diálogos, práticas ancestrais e medicinas naturais. Ele acontece nas dependências da Ação Comunitária Caranguejo Uçá.

Teresinha Luz (Teca), diretora da Ação Comunitária Caranguejo Uçá e coordenadora da Ciranda de Mulheres, conta que as ações surgiram quando perceberam a fragilidade em que as mulheres ficam mergulhadas. Essa fragilidade tem diversos aspectos, como a desigualdade, violência, a dinâmica exaustiva do cotidiano, de sobrecarga, impedindo que elas cuidem de si mesmas.

Terezinha enxerga longe formando novas lideranças. FOTO: Arquivo pessoal

Teresinha diz que “as ações da Ciranda de Mulheres têm esse caráter de autocuidado, para que as mulheres estejam bem, em condições de participar ativamente dos processos de decisão política, das dinâmicas de construção no território, e também na construção com outros coletivos feministas, compreendendo os direitos”.

Consciência política é fundamental para atuação social

Ainda segundo Teresinha, “por isso que é formação política e de autocuidado, para que elas tenham a condição de estarem bem com elas mesmas, e se posicionem ativamente com participação política na vida comunitária e nas decisões que são construídas em relação à condição da mulher na sociedade”.

“Pude ver as mulheres compreenderem o potencial que elas têm. A gente vê hoje mulheres com outras condições quando participam, ativas de fato, no sentido de compreender que o trabalho delas tem importância”.

Dessa forma, a  Ciranda de Mulheres torna-se um “lugar de acolhimento onde elas podem estar trazendo as questões mais íntimas. Faz com que elas sintam confiança. O racismo e a desigualdade de gênero fazem com que esse potencial seja destruído. Sabe uma morte em vida?”, pergunta Teca.

O trabalho da Ciranda de Mulheres é um exemplo de empoderamento, pois “é perceptível que as mulheres estão exercendo os processos na sua vida e na vida comunitária com mais autonomia, mais protagonismo. O caminho é esse”, finaliza Teresinha.

Junior Cardeal

@juniorgrama

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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