Despejo Zero durante a pandemia: moradores protestam em Belo Horizonte

Manifestação pelo DespejoZero em Belo Horizonte (MG), 10 de setembro de 2020- Créditos: Isabelle Chagas/ANF

No último dia 10, aconteceu o primeiro ato da campanha nacional “Despejo Zero”, na capital mineira, replicada em diversas cidades do país. Estiveram presentes moradores, líderes de ocupações urbanas de Belo Horizonte, Contagem, Sete Lagoas e Uberlândia (MG), representantes de movimentos sociais organizados na luta por moradia (MLB, Brigadas Populares, Luta Popular, Movimento Olga Benário, UP, dentre outros) e pesquisadores universitários, como reação às remoções e aos despejos promovidos por governos e proprietários privados.

Não foi a primeira e, muito provavelmente, não será a última vez que essas manifestações vão ocupar as ruas para fazer valer um direito cada vez mais urgente nesse contexto de pandemia: ter a garantia de uma casa onde se isolar com dignidade. 

Moradores de ocupações da RMBH se reúnem em protesto pelo #DespejoZero em MG- Créditos: Isabelle Chagas/ANF

A campanha “Despejo Zero” condensa várias reivindicações que têm colocado a vida de muita gente das periferias, principalmente quem resiste em ocupações menos consolidadas e em processo de negociação, à beira do insuportável: despejo de forma violenta, desemprego, falta de água e alimentação, estruturas em lona que dificultam a circulação de ar.

Entre “FORA ZEMA”, “FORA KALIL” e “FORA BOLSONARO”, a Praça da Estação, em Belo Horizonte (MG), foi ocupada por manifestantes que seguiram rumo à Prefeitura, onde moradores das ocupações Professor Fábio Alves, no Barreiro, Carolina Maria de Jesus, no Centro, William Rosa e Marião, ambas na Região Metropolitana, haviam protestado e acampado nos últimos meses, denunciando o atraso no pagamento do auxílio moradia pelo Governo do Estado de Minas Gerais e a Prefeitura de Contagem, e também a suspensão da ordem de reintegração de posse, no caso das duas primeiras.

Moradores de ocupações da RMBH se reúnem em protesto pelo #DespejoZero em MG- Créditos: Isabelle Chagas/ANF

Cerca de 500 pessoas se deslocaram em cima de carroças, cavalos, bicicletas e a pé, muitas das quais, moradoras de ocupações sem sinal concreto de risco iminente, mas que, sem a regularização de suas moradias, nunca deixam completamente de serem alvos.

“A gente estava aqui ontem mesmo”, contam alguns moradores da ocupação Professor Fábio Alves, que, há dois anos, abriga cerca de 700 famílias no Barreiro, quando os grupos se encontraram na Prefeitura. No dia 25 de agosto, foi organizado um acampamento em frente à sede do Governo Municipal em busca de uma intervenção no processo de reintegração de posse expedido em julho, cuja execução pode ser realizada a qualquer momento. 

Mesmo sendo um terreno particular, que, a princípio, não envolveria a participação do município no processo legal de reintegração de posse, a reivindicação dos moradores da ocupação Professor Fábio Alves é que ele se responsabilize pela mediação do conflito, impedindo que ações de despejo sejam realizadas na cidade durante a pandemia e elaborando estratégias para que as famílias não fiquem desabrigadas. Sem qualquer contato com os manifestantes ou seus representantes, a resposta da prefeitura chegou por meio de resumidas notas técnicas da assessoria de imprensa: sensibiliza-se, mas não se dispõe, na prática, a arcar com a conta.

Moradores de ocupações da RMBH se reúnem em protesto pelo #DespejoZero em MG- Créditos: Isabelle Chagas/ANF

No início do decreto de isolamento social na cidade, as vereadoras Bella Gonçalves e Cida Falabella, do mandato coletivo Gabinetona (PSol), protocolaram um Projeto de Lei que visava promover o direito à moradia como uma das medidas de enfrentamento à pandemia de Covid-19. O PL, que foi rejeitado pela Câmara, daria mais subsídios para que a Prefeitura atuasse na mediação de conflitos neste período, evitando a remoção das famílias e garantindo moradia adequada.

“Apesar de o PL não ter sido aprovado, o dever de mediar, prevenir e oferecer soluções aos conflitos fundiários na legislação de Belo Horizonte é prevista em dois dispositivos: a Resolução nº LII do Conselho Municipal de Habitação, aprovada em 2018, e o Novo Plano Diretor de Belo Horizonte (Lei nº 11.181), de 2019, ambos reformulados com a resistência e a participação da sociedade civil e dos movimentos sociais”, lembra Bella Gonçalves.

Por meio deles, o poder público deveria dar subsídios mínimos às comunidades que se encontram, neste período, em negociação com o Governo do Estado, através da Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais (Cohab). Ela tem descumprido os acordos de pagamento de auxílio-moradia para moradores de ocupações como a Carolina Maria de Jesus, que também espera pela construção de moradias que deveriam ter sido entregues em junho deste ano, por meio do acordo firmado em 2018. Ao lado da Professor Fábio Alves, elas realizaram uma passeata no dia 29 de julho, que começou na Cidade Industrial, em Contagem, até a sede do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

Moradores de ocupações da RMBH se reúnem em protesto pelo #DespejoZero em MG- Créditos: Isabelle Chagas/ANF

“No governo Kalil, apesar de termos tido um processo tímido e ainda não finalizado de regularização de algumas ocupações, não foi construída nenhuma casa popular. Em algumas ocupações, a Copasa até se dispõe a regularizar a distribuição de água, mas a Prefeitura barra”, conta Thales Viote, advogado e coordenador nacional do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). Lideranças das ocupações Eliana Silva, no Barreiro, e Helena Greco, no Zilah Spósito, foram algumas das que denunciaram a dificuldade de acesso à água potável.

O aposentado Antônio de Lima caminha com dificuldade, mas não deixa de acompanhar a manifestação junto com a esposa. Eles residiam na ocupação William Rosa até julho de 2017, quando foi firmado um acordo de desapropriação pacífica entre as lideranças do território, movimentos sociais, deputados e poder público. Ocupado em 2013, o terreno está localizado no bairro Jardim Laguna, em Contagem, e pertence à Central de Abastecimento de Minas Gerais (Ceasa). Segundo os moradores, estava abandonado há mais de 40 anos, descumprindo a função social prevista em lei.

Na ocasião, a Prefeitura de Contagem, em parceria com a Cohab, se comprometeu a pagar um auxílio a todas as famílias durante 18 meses, no valor mensal de R$ 450,00 reais, até a construção de unidades habitacionais para reintegrá-las. O acordo também incluiu a ocupação Marião, que se localizava desde o começo de 2017 em um prédio no bairro Maria da Conceição. 

Ana Carolina Félix de Jesus, moradora da ocupação Wiiliam Rosa – Crédito: Isabelle Chagas/ANF

A situação está bem crítica. Fizemos uma manifestação na última terça-feira em frente à Assembleia e à Prefeitura, mas nada foi resolvido. A Marião durou cerca de um ano, fizeram os contratos com a gente, mas há três meses não recebemos nada do auxílio aluguel, desabafa Ana Carolina Félix de Jesus, 27 anos.

Os moradores tentam negociar o pagamento com a Prefeitura de Contagem, mas a maioria está desempregada e sem renda, o que dificulta a permanência nos imóveis alugados. “Na pandemia, vieram os constantes atrasos de um, dois meses, até pararem com tudo. Têm pessoas que já foram despejadas, outras estão tirando da boca dos filhos para pagar o aluguel e não ficar na rua. Eu moro sozinha, mas tenho uma filha pequena. Está bem difícil, a gente não pode trabalhar”, concluiu Ana Carolina.

Um novo acordo foi realizado em janeiro deste ano com lideranças da ocupação William Rosa, sob a mediação do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania para Demandas Territoriais, Urbanas e Rurais e de Grande Repercussão Social (Cejusc Social), prevendo a continuação do pagamento do auxílio para as 432 famílias até março. Em nota, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) afirmou que a responsabilidade ficaria a cargo do Município de Contagem, em convênio com o Estado de Minas Gerais.

Sem o dinheiro do aluguel, as famílias passaram a viver num ciclo interminável de despejo, precisando retornar às ocupações, de onde foram retiradas, casa de parentes e, muitas vezes, às ruas. 

UMA CONTA QUE NÃO FECHA

O complexo jogo de responsabilidade entre governos municipal, estadual e federal deixa muitos moradores à mercê do descaso e do não cumprimento de políticas e acordos já previstos. Sancionada em 12 de junho, a Lei 14.010/20, que cria regras transitórias para as relações jurídicas privadas durante a pandemia de Covid-19, passou por diversos vetos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Um deles suspenderia, justamente, a concessão de liminares para despejos de inquilinos por atraso no pagamento de aluguel ou findo o prazo estabelecido de desocupação, no período de 20 de março a 30 de outubro. A medida beneficiaria ocupações como Carolina Maria de Jesus e Professor Fábio Alves. Mas, em pronunciamento oficial, Bolsonaro afirmou que a medida representaria “proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor”.

Diante de tantas desigualdades habitacionais que dificultam a contenção do coronavírus em comunidades, vilas, favelas e ocupações espalhadas pelo Brasil, o governo federal tem escolhido a estratégia política de rebatizar programas de habitação e transferência de renda já existentes, frutos de lutas sociais conquistadas nos últimos anos. O Programa Casa Verde e Amarela (PCVA), lançado em 25 de agosto por meio da Medida Provisória 996, é um exemplo disso. 

Além de possibilitar a regularização de propriedades sem condições de habitação, que deveria ser garantida pelos Estados e Municípios, o novo programa coloca a responsabilidade literalmente na conta dos moradores, que passam a ter que arcar com os custos dos acordos estabelecidos, antes obrigação do Estado.

Como afirmam as pesquisadoras e professoras da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Isadora Guerreiro e Raquel Rolnik em artigo, “o PCVA une a regularização fundiária a um dos elementos mais perversos do PMCMV [Programa Minha Casa, Minha Vida]: o sistema de oferta, não de demanda. Não eram as prefeituras que diziam onde, como e quantas unidades habitacionais seriam produzidas, mas sim a oferta realizada diretamente pelas construtoras”.  

MORADORES RESISTEM ÀS CONSTANTES AMEAÇAS

Moradores da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) com camisas bordadas e a bandeira do movimento LGBTQIA+, em apoio à ocupação Cidade de Deus (CDD), localizada no bairro homônimo em Sete Lagoas, também denunciaram o processo de despejo colocado em curso pela prefeitura da cidade.

O terreno, de propriedade do município e sem uso há mais de 20 anos, foi ocupado no dia 24 de maio por 100 famílias que não tinham onde se estabelecer em meio à pandemia. Muitas delas tiveram suas casas interditadas pela Defesa Civil e chegaram a procurar a Assistência Social da Prefeitura, mas não foram atendidas. Segundo integrantes do Coletivo Sementes de Luta, que tem apoiado a ocupação, no dia posterior ao estabelecimento das famílias, a Guarda Municipal realizou o despejo administrativo, sem abertura de processo judicial.

Após uma passeata realizada em frente à Prefeitura, foi proposta uma mesa de diálogo com as lideranças da ocupação. Contudo, elas não foram recebidas na data marcada e continuam aguardando. Enquanto isso, a notificação de reintegração de posse foi emitida no início de junho, sem qualquer tentativa de negociação prévia por parte da Justiça. 

Henrique Canuto, decorador e organizador de festas – Créditos: Isabelle Chagas/ANF.

“Nós conseguimos acesso à água com muito custo, mas ainda não temos saneamento nem luz. Moramos só eu e meu filho, de 9 anos, e eu não estou mais conseguindo trabalhar porque sou decorador e organizador de festas e eventos, o que está proibido de se fazer neste momento”, comenta Henrique Canuto, 30 anos.

Muitos moradores das ocupações estão desempregados, alguns conseguiram aprovação do auxílio emergencial. “Literalmente, zerei a minha renda, não trabalho com carteira assinada. Tenho vivido com os R$ 600,00 reais do auxílio emergencial, tentei como chefe de família, mas não consegui. Só recebi três parcelas até hoje”, explica Henrique 

Como alternativa ao que nomeou de “condições insalubres” de habitação, a Prefeitura ofereceu o espaço de um ginásio e duas escolas municipais para a realocação das famílias. A professora do Estado e uma das integrantes do Coletivo Sementes de Luta, Camila Costa, 27 anos, destaca que a recusa dos ocupantes se dá pela necessidade de um acordo que ofereça moradias dignas às famílias, e não abrigos temporários. “Toda essa luta que nós estamos construindo foi semeada aqui. A gente aprendeu que ocupar é legítimo e digno, observando a luta das ocupações urbanas de Belo Horizonte, e a gente vai espalhar essa luta por todos os cantos”, afirma Camila.

Thales Viote (MLB) avalia que a ocupação CDD, organizada com os movimentos sociais, pode ser considerada uma das primeiras em Sete Lagoas onde a organização popular na luta por moradia é mais tímida e reprimida pelo poder público. Neste município, também foi expedida, em 2017, a última ação de reintegração de posse da Vila Nova, comunidade com cerca de 30 anos de existência na Regional Norte de Belo Horizonte no final de 2017.

O processo foi transferido para a comarca de Sete Lagoas em 2014, após o processo de falência da proprietária do terreno, a Marialva Construtora Ltda, pertencente à família do ex-prefeito da cidade, Múcio Reis. 

“A situação da Vila Nova é mais um dos vários casos de despejo que estão em curso na justiça. É por isso que estamos pautando essa campanha nacional, do Despejo Zero: o processo está parado, mas pode ser retomado a qualquer momento. Estamos falando de uma comunidade completamente consolidada, com mais de 300 famílias e quase 30 anos, com acesso a todos os serviços básicos, pagando as suas contas. Só falta a titulação para se viver com dignidade”, afirma Thales Viote.

Sônia Pereira, 51, rememora com a filha os 23 anos na Vila Nova. Em casa, há um enorme bolo de contas de água e luz, cuidadosamente guardado desde que esses serviços chegaram na ocupação. Ela se lembra dos primeiros anos, quando as mulheres que trabalhavam durante todo o dia precisavam subir à torneira coletiva para encherem as caixas de água já beirando a madrugada, enquanto os filhos dormiam.

Com os comprovantes de pagamento em mãos, os moradores frequentavam as reuniões convocadas sob os incontáveis episódios de ameaça de despejo: era a prova do tempo que vem transformando o terreno abandonado em um verdadeiro território.

Sônia Pereira mora há 23 anos na Vila Nova – Créditos: Isabelle Chagas/ANF

“Há uns 14 anos, quando estávamos colocando laje nesta casa, com muito custo e a ajuda de familiares, um vizinho me disse que seríamos despejados. Isso aqui estava sem teto, a sala, o quarto, dormíamos com tudo aberto. Eu chorei de desespero, na frente do pedreiro. Pensei: meu Deus, o que é que eu vou fazer agora, com uma filha pequena ainda?”, relembra Sônia Pereira.

Passados quase três anos da última notificação, não cumprida em função do grande barulho feito pelos moradores com o apoio do Ministério Público do Estado (MP-MG), da Defensoria Pública do Estado, do programa Diálogos Comunitários e movimentos como o MLB, as Brigadas Populares e outros, a tranquilidade com que se vive continua com a sensação de ser provisória.

Até o fechamento desta matéria, não houve retorno das assessorias de imprensa da Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais (Cohab) e do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG), que acompanham os casos das ocupações urbanas em processo de negociação e despejo.

Esta matéria foi produzida com apoio do Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo do Google News Initiative.