A conta não fecha!

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Nos últimos anos eu tenho vivido de contas, como a maioria dos brasileiros. Cresci no habitual conceito do pendura, coloca no prego e essas coisas que a gente faz na barraca da esquina quando as coisas apertam em casa. Quem nos socorre nessas horas? O buteco ao lado. Claro!


Anos 90

Ovo, miojo, coca-cola, o varejo, doce de abóbora e até a cerveja, por que ninguém é de ferro né? Pendura aê Dail!

Dail é o cara da barraca da esquina. A barraca com grade que eu desde menina, morria de vergonha de ir comprar no fiado.

“Coloca na conta” era a expressão que eu mais odiava ouvir minha mãe dizer. Como pode? Eu quero ter dinheiro pra chegar e comprar, isso era muito mais divertido. Mesmo que eu não entendesse, o fiado tinha olhares diferentes e colocar na conta também me dava um atendimento do qual eu não gostava. Deixava claro que lá em casa as coisas estavam apertadas, mesmo que fosse pra pagar mais tarde. Não tinha jeito. Já estava feito o olhar que só recebe quem compra fiado.

O Dail sempre foi gente boa e mesmo zoando as crianças (até hoje), nunca deixou a gente na mão. O fiado, o pendura, a conta, era (e é!) na maioria das vezes, servido para qualquer um. Do ovo à cachaça, se precisa-se lá estava. Do jeito dele, mas estava.

Quando não era o Dail na barraca, Ah! aí a coisa mudava de figura. Não tinha o menor jeito do fiado sair. Não tinha choro, nem vela ou criança melequenta pedindo ajuda que fizesse qualquer outra pessoa da família liberar a conta pra gente e se tivesse devendo então, já viu né? De certo ainda levaríamos um ‘sabão’ daqueles pra vir e fechar a conta na barraca.

O que acontece era que o Dail conhecia todo mundo e sabia dos perrengues da gente. Ele ouvia as crianças e sabia quem pegava fiado por que precisava (Mesmo a cachaça) e quem já extrapolava. O resto da família não, aquela galera nem sabia nossos nomes direito, não sabiam nada além dos seus olhares sem nenhum sorriso para as dificuldades alheia.

Bem, esse era o meu pensamento de menina pequena.

Cresci comecei a trabalhar e prometi pra mim mesma que nunca mais penduraria nada na barraca, mas as coisas não eram como eu imaginava e um dia, sem pensar duas vezes como se fosse a única saída plausível (melhor do que roubar), eu já estava pedindo a minha irmã pra ir no Dail e pendurar a minha primeira conta, depois de adulta e dona das obrigações de casa.

2 ovos, um miojo, uma sardinha em lata.

– Avisa que pago assim que o salário cair na conta.

E lá ia a minha irmã, morrendo de vergonha e retrucando pelo caminho inteiro, Chegava em casa e ela sempre dizia: “Nunca mais me manda ir comprar fiado. As pessoas olham a gente diferente e eu não gosto disso, além do mais o Dail é chato.”

Eu sabia que era verdade, mas dizia:
“Coisa da sua cabeça garota. Ninguém nem percebe que tu tá comprando fiado.”

– Então porque você não vai?

Aquele pingo de gente estava no dia de me tirar do sério, mas eu não ia ceder a malandragem daquela pirralha. Afinal de contas irmã mais velha que se preze, manda as “menó” fazer as tarefas da rua e de casa. certo? rs

Mas complicado mesmo era no dia de prestar contas na barraca. Soma daqui, multiplica dali e a conta não fechava nunca. Era sempre um “Deus nos acuda”, mas com muita paciência e humor chegávamos num acordo final. Dia de fechar a conta era sempre a mesma promessa: “Nunca mais eu compro fiado. Deus me livre”. No outro mês, lá estava eu na barraca novamente dizendo: “Mas Dail, essa conta não fecha”!

2018

Outro dia fui almoçar com uma amiga no Village Mall, ali na Barra da Tijuca. Era uma almoço pós reunião e agora, diferente das outras vezes, não tenho problema algum em aceitar a cordialidade ou andar me sentindo pertencente ao espaço.

Na minha bolsa, apenas um monte de livros e a passagem contada pra pegar o Caxias x Barra bem na porta do shopping elitizado. Isso não me constrange mais.

A saia da Prada, exposta na vitrine pela bagatela de mais de 17Mil reais não me causa mais a sensação de que ali não é o meu lugar e o cara tocando piano no hall central, não me deixa com a sensação de que aquilo não é para os meus ouvidos.

A primeira vez que entrei nesse mesmo shopping, foi para um evento que aconteceria no teatro do espaço, quase cai pra trás quando vi que os 18 reais no meu bolso, que compraria uma refeição ‘executiva’ num restaurante no centro de Caxias, ali só me daria a vantagem de um cafezinho que levei no estômago até o final de 5h de palestra que fui assistir.

Naquele dia era diferente, eu já estava mais segura de mim, não suava de vergonha a cada pisada pelo shopping, não me sentia inferior às pessoas pela diferença das minhas roupas ou pelo perfume que exalava. Avon né meu caros! A gente sabe de longe que não é caro.

Uso, não nego e me pague outro quem quiser!

Mas foi quando eu peguei o cardápio, que lembrei dos penduras que fiz lá na barraca no Dail. Me lembrei da vez que um menino bateu na minha porta, às 23h de uma Sexta-feira, depois de ter cruzado a cidade inteira pra comprar a comida de casa.

Naquele dia, eu só tinha 30 reais no bolso e enquanto separava para o menino, arrumava o colchão na sala o cobria e explicava que no outro dia, quando ele fosse pra casa, não era pra desanimar. Ele ia conseguir chegar onde queria que era só preciso estudar, trabalhar duro e não se perder nesse mundo. Que ele era inteligente, corajoso e saberia fazer as escolhas certas.

– Quero trabalhar criando computadores. Uma casa organizada e lasanha todos os dias, pronto! Estarei rico. Não ter que pendurar mais em barraca de ninguém e ter meu dinheiro pra comer o que quiser.

Respondeu.

Naquele dia do almoço com a minha amiga, eu percebi que aquela conta pagaria mais de um mês de compras para aquele menino.

A conta não fecha nunca. Vocês conseguem perceber?
Percebi que estava perdendo a perspectiva que me impulsiona a me manter viva. Perspectiva positiva é nosso oxigênio para respirar, quando o ódio cisma em querer colocar fogo em tudo.

Quando a gente perde essa visão para além dos fiados, é como se nada mais fizesse valer a pena na caminhada.

Eu vivo de contas, como a maioria dos brasileiros, mas nos últimos meses eu tenho buscado não perder a minha perspectiva de dias melhores. Sai das redes sociais com o intuito de redescobrir, através de um olhar mais atento, as possibilidades da vida. Pra mim especialmente. Afinal de contas, como oferecer o que não se tem? É preciso resgatar o sangue nos olhos que nos faz acelerar e movimentar a outra ponta da fila de espera por um futuro decente.

Entendi que se a conta não fecha e o fiado não supre mais as nossas necessidades reais, é preciso encontrar outras saídas mais sustentáveis e que resistam às nossas demandas diárias e urgentes.

Naquele dia, sentada naquele restaurante caro eu percebi que aquilo também é pra mim. Que também é para o menino que cruzou a cidade em busca de 30 reais e fez grande parte do caminho a pé. Tudo isso na linha fina de não desistir de tudo. Tudo isso pra não se render ao crime que por vezes é sim o único caminho aberto, esbofeteando a nossa cara e dizendo que não tem jeito. E assim, ser mais um no terceiro sistema carcerário mais lotado do mundo.

Naquele dia eu entendi que é preciso continuar lutando e encontrando novas perspectivas. Que ainda tem muito a ser feito.

Outubro de 2018

Entendi que temos o poder de mudar tudo isso em mãos e que é preciso muita coragem pra fazer escolhas e que essas escolhas possuem consequências que precisam ser pensadas milimetricamente. Detalhe por detalhe. Plano por plano.

“Coloca na conta” era a expressão que eu mais odiava ouvir minha mãe dizer. Como pode? Eu quero ter dinheiro pra chegar e comprar, isso é muito mais divertido.

Eu já sabia, desde menina. Por aqui a conta não fecha.

Por enquanto. Afinal de contas, ainda não é o fim da linha.