A alma encantadora dos bares: na noite profunda

A labuta do suburbano - Foto: Wallace Pato

Para além da calçada dentro da pista movimentada precipitam-se altas mesas redondas. Embora seja da sua natureza as distrações, que são muitas, pouco se permitia em meio daquela arrumação, numa vasta esquina aparentemente pacata. Que coisa é a conversão de uma alma suburbana! Senão para atraí-la, o pedinte, o ambulante, sequer conseguem obrigá-la a se virar e deixar as costas desguarnecidas à rua. Porque, por essas bandas, jamais se descuida da retaguarda. Ela é traiçoeira.

A atendente concorria tanto com o pedido do cliente, na vozeria aglomerada, quanto com aquela esquina, que a todo momento parecia querer estacionar carros. Vinham misteriosos, pisca alerta acesos, vidros escuros e lentos se encostam, olhando e seguindo adiante. A amendoeira que era um gigante ancestral, emergia aquele chão escalando todo o espaço aéreo, como num enxame de bombardeiros. Havia presenciado ao longo dos anos, em Maria da Graça, a poesia, por vezes o sangue. Debaixo da árvore havia assassinatos relatados, amantes conflagrados e canções entoadas junto ao violão.

– É bar de polícia e sambista! – disseram-me.

E que histórica e difícil combinação. Quando da noite eminente, quando o pôr do sol se tornara uma fina luz azul e menos evidente quanto o balcão ainda generoso, nossos sentidos intuíam tão confiáveis quanto aquela esquina. Duas visões de mundo me reabilitaram em sua integridade. Fizera do álcool a evaporação. De súbito, perto de fechar, evocou-se na mesa:

– Se não vivemos a completa privação, opressão, se não é o desespero… O que mais vivemos?! – disse um amigo, antes da golada reflexiva.

Enquanto absorvíamos aquela apoteose apocalíptica, recebíamos da garçonete a última rodada. E, como que insatisfeita, a rua, essa entidade maior, nos colocara frente ao destino do sobrenatural.

– E, é por isso que ando por aí… Bebo, fumo sendo crente, e não deixo de pedir aos
meus Orixás, para que me guiem.

Encostando em nossa mesa, nesse vale de lágrimas que se tornou, ela viera e desaparecera no afora interminável. Ouvir aquilo havia aguçado a sensibilidade. Como já não fosse sua vítima. E, continuaria vítima dela, qual uma síndrome. Despertado para essa investigação, passei a ver inevitavelmente tudo em conexão. Eram as tramas mais sutis se desenrolando.

Encerramos e nos despedimos, cada qual seu caminho. A pedido do amigo Pato, obstinamos em outra paragem. Sentamo-nos, pedimos cervejas. Nos reservamos em uma humilde barraquinha de sanduiche e bebida, que inaugurara de um vizinho. Estreitava-se entre um chaveiro, à beira da pista e uma mecânica. Sua esposa grávida e ele desempregado. Andava a orar por essas igrejas que a tudo dominava na paisagem.

Foto: Wallace Pato

Necessitado, vendia a bebida que não usufruía. O camarada era um sujeito bom e não cabia duvidarmos da sua fé e sua crença. Assim como ele o subúrbio estava repleto. As barraquinhas como bares improvisados, surgiam no cair do dia, como focos de incêndio. Era aquela gente heroica, rejeitada pelo mercado.

E, as igrejas dedicadas ao grande mercado da fé, só se multiplicavam, e, as tendas nas ruas, não eram dos pastores pregando, eram das famílias que não prosperavam. Essas tinham em vista a prosperidade prometida pelas igrejas, embutido no misticismo do empreendedor. Essas palavras inventadas e comuns do mercado para fazer pobre acreditar em milagres antigos, em deuses modernos.

E, assim como as igrejas, as lonas dos improvisados botequins brotavam em todo lugar, como organismos em simbiose. Se pudéssemos retirar, de improviso, os veículos e os transeuntes, veríamos as incalculáveis barracas como oásis num deserto. Em cada vão, modesto e invisível ponto da periferia, alumiavam. A quem fosse pego de surpresa, vindo de áreas mais nobres, acreditaria até serem desabrigados nos acostamentos amontoados. Mas, eram só os descartados que o mercado desabriga, que as igrejas acolhem. Um exército de reserva que erra pelas engrenagens à procura de encaixe.

Entre o mercado e a fé, essa multidão era a predileta do mercado da fé. As igrejas que pedem dízimo, sujeitam-se ao dízimo da milícia, em muitas regiões. Os dois acharcam as famílias: um pela fé, outro pelo aluguem da rua. E, não é raro a polícia em vigia, comer, beber, posar e levar seu dízimo também.

Por fim, são quatro as luzes que compõem a profunda noite suburbana: as sirenes da polícia, que tudo acinzenta; as brasas vivas dos altares das igrejas, que vão até o amanhecer; as fogueiras dos desvalidos mendigos à margem; e as gambiarras dos bares improvisados.

Depois de algum tempo, o vizinho que examinava vez em quando a mais gelada, a pedido de Pato, no saco de gelo e no isopor, nos disse que havia concluído. Então, pedimos a conta. E as últimas, ele nem as cobrou.

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