A alma encantadora dos bares: misterioso Engenho de Dentro

Davizin no Codorna do Feio - Foto: Wallace Pato

Cuspidos do Trem para uma estação dita moderna, que a faixada encobria nos detalhes do passado, o trabalho forçado. E, que certamente não podia escondê-los hoje. Os pobres seres que dela precisam, do lado de fora, desde a saída, cercam, em céu de lonas azuis, disputando cada centímetro, uma feira, que nunca dorme. Ali famílias inteiras se revezam. Vendem de tudo.

Dez e meia da manhã, pisávamos em Engenho de Dentro. Nos arredores víamos pelas ruas, similares atenuações da realidade, que buscávamos. Antes das onze, já sentados. Codorna do Feio era o nome. E, haveria mais sugestivo boteco que pudesse ilustrar aqueles caras impregnados de churrasco, suando bicas, desejando por favor do cliente, ao passo que deles…, sequer reação? Assim transcorria o ambiente: acanhado, ruidoso, esfumaçado. Até que, lá veio Davizin. Um amigo e rigorosamente uma fonte, no pacífico silêncio do subúrbio, para assuntos singulares, por detrás do silêncio do subúrbio.

Onze e meia éramos quatro à mesa. Duas conhecidas dele surgiram, inesperadamente. As duas por sua vez eram seu contato. Agora brindávamos em saudação. Meio dia e meia. Não se mostraram entusiasmadas, nem atenciosas, as olhávamos, indecifráveis. Até que Pato fez sinal, talvez de incompreensão ou desistência. Queríamos ser confrontados a situações, pessoas e áreas ocultas da região.

Davizin com habilidade, sem qualquer receio ou a menor discrição, fitando as duas, como era de seu costume, firme segurando a mão de uma delas, disse:

– Abre aos meninos! É o trabalho deles.

Misteriosa, além de não responder, deu-lhe um beijo, que tonteou pelo menos três mesas à volta. Até um casal de idosos, que tentava atravessar a rua. Atônitos pareciam recordar algo perdido, na imensidão da memória.

Existiram homens galantes e poetas da estatura de Bilac, sim existiram, homens de outro tempo. De extrema inteligência como Luíz Gama, um literato e um determinado. Fortes e libertadores como Thomás Sankara, todos meus heróis. Contudo, durante aquela tarde, além deles, muitos desintegravam-se como fumo no ar, desapareciam.

Ela se foi. Elas se iam, e, por coincidência, logo outra surgia, como num ballet. Se pudesse cronometrar não seria tão preciso. Umas não aludiam à lembranças, outras mal o cumprimentavam. E, outro beijo. Eu havia duvidado, porém, depois da terceira, piscando pra gente e se entregando como fosse despedida, Pato olhou pro alto, pro vazio e dando um toque com o anel na cadeira, soltou:

– Isso aqui tá mandado!

Antes de ver isso se repetir, ao menos mais três vezes, havia em mim, uma espécie de referência e elegância no vestir, no portar e no falar, para o cortejo. A oralidade, sobretudo, seria importante. Conduzir uma conversa amigável sendo atraente em meio ao burburinho, era algo louvável e digno dos grande mestres.

A Davizin, faltava-lhe ar de tanto se atropelar falando alto. Não poucas vezes éramos interrompidos por anônimos que o reverenciavam. Vez ou outra cuspia no chão, alertando do pigarro que teimava não largá-lo. Em seguida, repetia:

– Nunca soube conquistar, sempre fui conquistado!

Mirava, aprumava e então destinava o crime. Muitas não se iam, se viam, falavam, bebiam, se beijavam até. Talvez eu nunca venha entender a juventude. A tarde fez-se noite, intrigados e paralisados. Quando sua mãe apareceu, com um raro favor da sabedoria, nos emparedou:

– Meu filho pode não ser bonito, mas tem cara de homem!

A senhorinha franzina em sua fineza dava risadas, com orgulho de provedora implacável. E, a mulherada de fato confirmava, a todo instante, em toda sua consistência e esplendor.
De repente um ônibus para, Davizin abre os braços, junto-me a ele. Pato corre após.
Embarcados porém disse, como profecia:

– Amanhã ele esquece. Relaxa gente, vocês estão com o padrinho, acalmou batendo no peito.

E realmente um cara grande e barbudo corria e gritava pro ônibus. E sumia atrás dele. Um namorado enfurecido provavelmente.

Eu que era apenas um insignificante cronista da cidade e um sôfrego no amor, talvez por não compreender o direto de amar, dono de um coração tão exaurido, carregarei para sempre comigo as lições que compartilhei com Pato, o pintor, de Davizin, sobre o falso conservador do subúrbio, do terno beijoqueiro de Engenho de Dentro.

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