Entrevista: Caio Ferraz, poeta e sociólogo

Créditos: Arquivo pessoal

“Vivemos em uma sociedade de privilégios”

Bola de gude, pião, pipa, carrinho de rolimã e livros: o poeta e sociólogo Caio Ferraz guarda grandes lembranças de sua infância. Um dos 12 filhos de um mestre de obras e de uma dona de casa, o menino franzino, estudioso, exercia liderança desde as brincadeiras nas ruas de terra batida na favela de Vigário Geral.

Caio já era assim quando, em 1989, uma tragédia mudou sua vida: o assassinato do irmão Jorge Luiz, morto pela polícia com a carteira de trabalho nas mãos, tornou-o um ativista dos direitos humanos. Ele foi estudar Ciências Sociais na UFRJ para explicar à mãe por que tamanha violência. As perdas, porém, ainda seriam muitas, incluindo outros quatro parentes em menos de três décadas. Dois amigos de juventude também estavam entre os 21 trabalhadores brutalmente assassinados na Chacina de Vigário Geral, que em 1993 marcou para sempre a comunidade onde nasceu e cresceu.

Quando se formou na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1994, Caio Ferraz era, além de uma celebridade local, um dos principais ativistas de favela do Rio. Ele transitava por gente do naipe de Elias Maluco a Caetano Veloso. A força para lutar contra as injustiças seguiu inabalável com a fundação da Casa da Paz, no imóvel onde oito pessoas de uma mesma família foram mortas naquela fatídica madrugada de 29 de agosto. Ali, Caio fez sua pequena revolução, levando investimento social e transformação para a favela.

Colocar o dedo na ferida para defender seus 12 mil irmãos de Vigário Geral o levou ao autoexílio nos Estados Unidos, em 1995, após uma série de ameaças contra ele e sua família. Lá, Caio se tornou mestre em Planejamento Urbano pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), uma das mais reconhecidas instituições de ensino do mundo, e se estabeleceu na fria cidade de Boston, onde criou as duas filhas. Assumir a persona de poeta o salvou da melancolia do sonho americano, onde se reinventou enquanto empreiteiro, inspirado pela profissão do pai.

Espécie de malandro moderno que traz com leveza uma trajetória tão marcada por dramas pessoais, o colunista e colaborador da Agência de Notícias das Favelas se prepara para cobrir pela quinta vez o carnaval do Rio, momento em que vive o máximo da poesia do imaginário que explora nos textos, poemas e pensamentos que publica quase que compulsivamente nas redes sociais. O lançamento de um livro, que já tem até título (“Contos do Vigário”), está nos planos do poeta que nunca para de pensar, ainda que à distância, a realidade brasileira. O Rio e o Brasil, seus assuntos preferidos, são os tópicos da entrevista que o leitor pode apreciar agora.

 

A Voz da Favela: Há quem diga que a violência do Rio pode ser comparada a dos anos 1990. Isso é mesmo possível?

Caio Ferraz: A violência de 2018 é comparada à violência de 1500. O Brasil sempre foi um país violento. Muita covardia se cometeu contra a população nativa aqui. A história de todas as revoltas populares sempre foi de massacre. A escravidão no Brasil é o nosso holocausto. Nós somos um país racista, machista, feminicida, que não gosta do pobre, do preto e da puta. A violência agora é muito mais latente e visível, porque temos acesso a mais dados. As desgraças são muito mais compartilhadas. Teve um boom de sequestro na década de 90? Teve. Era localizado nas favelas. Alastraram-se as favelas, o drama social continuou o mesmo. Houve um corte na era Lula, que deu um up na beleza de todo mundo, mas foi momentâneo. O Estado, agora, se retira. Eu tenho uma foto com 16 amigos. Dali, só tem quatro vivos. Um está preso. Que sociedade é essa? Se você olhar para o quantitativo, o Brasil, desde a década de 1990, vive em guerra civil não declarada. Mata-se muito mais do que em outro qualquer lugar no mundo. E quem comanda a droga? São os caras de Ipanema, Leblon. Os caras que estão dando isenção fiscal, que estão na Assembleia Legislativa. A sociedade, em vez de expurgar, fazer uma operação honesta, como fizeram na Itália, em Nova York, nunca teve coragem para isso.

 

AVF: Como você viu a criação da UPP? Como vê agora?

CF: Se quisessem fazer uma coisa honesta, faziam em Vigário Geral, Acari, locais que tiveram chacina, em outros morros, que eram berços do Comando Vermelho e do Terceiro Comando, proibiriam 100% o acesso telefônico no presídio. A polícia foi criada para proteger o Estado, os senhores de engenho. A polícia é racista, chega na casa do pobre quebrando tudo. Sempre foi assim. Quando se criou a UPP, criaram um cinturão entre Maracanã e Barra da Tijuca. Expulsaram a galera do caminho, não prenderam ninguém, avisavam quando ia entrar. Todas as UPPs foram feitas no território do Comando Vermelho, que é quem sempre confrontava a polícia. O Terceiro Comando sempre deu arrego. Você quase não vê tiroteio em favela deles porque sempre deram.

 

A lógica da polícia é ocupação, não é fazer com que a sociedade dialogue.

 

AVF: Traçando mais uma comparação, você vê alguma diferença entre aquela polícia dos anos 1990, que cometia chacinas descaradamente, para essa polícia de hoje?

CF: Existe chacina todo ano no Brasil. Nós nos acostumamos. A gente não fala, mas eu sei de chacinas em Vigário Geral onde morreram mais de 50, entre polícia e bandido. Miliciano está matando direto na Zona Oeste. Hoje, tudo que acontece na Cidade de Deus a Vivi (Salles, ativista local) tá narrando. Eu não tinha como fazer isso na minha época. E, se acontece aqui, imagina nos rincões do Brasil. Nos anos 1990, existia uma polícia muito forte, que era o Bope, que entrava na casa dos outros, matava todo mundo e ficava por isso mesmo. Quem não se lembra do Homem da Capa Preta? Do Esquadrão da Morte? Foi na década de 1980. Na Baixada, se mata muita gente. Meu sobrinho morreu dois anos atrás por causa de uma bobeira, uma conversa de WhatsApp, falando de uma menina que era namorada de um miliciano. Bobeirinha de adolescente. Quando eu soube, já era tarde. Só consegui liberar o corpo porque tenho minhas conexões – para, pelo menos, minha irmã ter a dignidade de enterrar.

 

AVF: Quantos parentes você perdeu pra violência?

CF: Cinco. Tive um irmão (desaparecido) em 1986. Roubaram o caminhão onde ele trabalhava, mataram e levaram a carga. Nunca acharam o corpo. Em 1989, teve o Jorge Luiz, meu irmão também, que a polícia matou com um tiro no rosto. Tive um outro sobrinho que, jovem, começou a ser aviãozinho. Morreu com 13, 14 anos. O próprio filho do Jorge Luiz reviveu a tragédia do pai. No total, da família, foram cinco homens. A violência recai muito sobre o sexo masculino. A sociedade tá perdida, sem lei. O Estado está totalmente esfacelado. Faliram o Estado propositalmente. A polícia e os bandidos estão sem controle nenhum. Acabou a Olimpíada, acabou tudo. Nos próximos cinco anos, dez anos, vai ser muito maior o número de violência direta e assalto. A lógica da polícia é a tomada do território. É ocupação, não é fazer com que a sociedade dialogue, como aconteceu em Vigário Geral. Nós fizemos uma coisa ousada. Conseguimos parar a guerra entre Parada de Lucas e Vigário Geral por oito anos, sem um tiro. Não teve UPP, coronel, canhão, Força Nacional. Teve diálogo, e conseguimos avançar.

 

AVF: Você acha que isso seria possível hoje? O perfil do tráfico é diferente.

CF: Seria imperativo fazer isso. Nunca me chamaram pra discutir nada sobre UPP ou pra repensar sobre território e favela, ninguém. Acham que são autossuficientes. É a tal da elite da Praça São Salvador, que acha que ocupação cultural vai resolver o problema. Não existe essa possibilidade. A política de combate, de criminalização das drogas deu errado no mundo inteiro. A maior população carcerária do mundo é a dos Estados Unidos. O que eles fizeram? Aceleraram o processo de racismo. “Guetizaram”, criminalizaram a droga. O sistema é racista. A pena é muito mais pesada pra quem é negro, pra quem é nordestino. Tem que descriminalizar a droga, tirar o poder econômico dos dois lados, da polícia e do bandido, criar um mercado, como está acontecendo em Los Angeles, na Califórnia, em Boston, cidade onde eu moro. Eu ando com maconha no meu carro, e não sou consumidor compulsivo. Uso recreativamente. Por que se criminaliza isso, deixando na mão de um grupo que está armado, à mercê da sociedade? Cria-se toda uma literatura voltada, principalmente, para a criminalização da pobreza. Quando você olha ao redor, onde está o negro, o pobre? Na periferia. Então, o estado entra pra matar. Se existe tiroteio em qualquer favela, não tem arrego. Na Favela Para Pedro, na Cruzada São Sebastião, em Ipanema, no Leblon, tem tiroteio? Não, porque tem arrego. Você vai dar tiro em quem tá te dando dinheiro? O corte da violência no Rio de Janeiro se dá a partir do fim da Ditadura Militar, de 1985 para 1986. Antes disso, não existia arma em favela. Eu vi uma vez, em Vigário Geral, um caminhão chegar com 300 armas, com dois caras do exército. A sociedade civil deve discutir as questões das drogas, fazer um balanço político, como é feito nos Estados Unidos e na Europa. Junta todas as cabeças pensantes e faz um pacto a nível nacional, como conseguimos na Constituinte de 1988. Todas as cidades balneárias têm um problema sério com drogas. Fortaleza, Manaus… Virou uma epidemia. Como você controla isso? Em toda a sociedade existe corrupção. Se a gente não fizer esse corte pra frente, daqui a cinco, dez anos, você só vai ouvir isso: massacre, chacina na Rocinha, no Vidigal e em outras favelas.

 

ANF: Como você vê o Rio de Janeiro daqui a 22 anos?

CF: É difícil. Uma sociedade que não respeita o passado, não conhece a sua história e não está nem aí para o presente vai pensar o quê do futuro? O custo da paz é muito menor do que o custo da violência. A cidade não tá se pensando no tempo. O tempo dela parou. Vivemos no tempo do Império, na cidade do privilégio. As pessoas brigam por privilégio. A lógica tá errada. Bastavam 30 anos de bonança social pra você quebrar, no mínimo, duas gerações de pobreza. Vivemos em uma sociedade de privilégio, somos uma sociedade de castas. Então, a violência começa lá em 1500. É tão violento que os caras nem sabiam o que fazer no começo. Transformaram o Brasil em capitanias hereditárias. Até hoje, não sabem.

Publicado no mês de fevereiro de 2018 no jornal A Voz da Favela.