Uso medicinal da Cannabis: direito de todos, mas quem tem acesso?

Creditos-Freepik

Entrevista exclusiva com a Dra. Mariane Greice Pereira Ventura e a Técnica de Enfermagem Denise Andrade

Nos últimos anos, a discussão em torno do uso medicinal da Cannabis tem se intensificado, marcando uma mudança significativa na percepção pública sobre essa planta milenar. No entanto, apesar dos avanços na compreensão de seus benefícios terapêuticos, um desafio persiste: o acesso equitativo.

O direito de todos a tratamentos eficazes não deveria depender de condições financeiras, mas a realidade muitas vezes pinta um quadro diferente.

Ainda é necessário desmistificar os estigmas que ainda envolvem a Cannabis medicinal e explorar como ela pode oferecer alívio para uma variedade de condições de saúde. E não podemos esquecer que, apesar da legalização em muitas regiões, o acesso ainda é desigual, favorecendo aqueles com recursos financeiros.

Confira a entrevista feita pela equipe da Agência de Notícias das Favelas, com a Drª Mariane Greice Pereira Ventura, formada em medicina pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com especialização em Medicina de Família e Comunidade, pela Fundação Estatal Saúde da Família.

Drª Mariane Greice Pereira Ventura – créditos: divulgação

Como você descreveria o aumento nas vendas de produtos à base de cannabis medicinal no Brasil, como indicado pelos dados da Associação Brasileira da Indústria de Canabinóides (BRcann)? Quais fatores você acredita que estão contribuindo para esse crescimento?

Em relação ao aumento eu vejo dois movimentos. O primeiro é o acesso a informação sobre o uso medicinal da cannabis, na mídia, os casos, os próprios profissionais de saúde também, a própria sociedade como um todo vem conhecendo os potenciais terapêuticos e desmistificando esse contato com a planta,  com o uso. Um outro fator que observo, hoje em dia as pessoas buscam por uma medicina integrativa, uma medicina mais natural, um contato com a natureza. De certa forma essa vida moderna acabou gerando vários adoecimentos para as pessoas, assim como mudou a prática médica, tornando-a muito alopática voltada para medicação, procedimento e menos humana, com menos contato com a natureza, com cuidados com a individualidade de cada um e olhando de forma integrativa. Então, vejo que a cannabis também é uma busca por uma medicina mais natural, mais saudável para o nosso corpo. 

O crescimento das importações de produtos à base de cannabis medicinal na Bahia, conforme relatado pela Agência Tatu, é impressionante, com um aumento de 7000% entre 2018 e 2022. O que você acha que está impulsionando essa tendência na região?

O que eu vejo que impulsiona isso é a questão do acesso à informação. As pessoas buscam esse tratamento, elas vêm para o profissional em busca desse tratamento.

A pesquisa do Portal Cannabis & Saúde revelou um aumento significativo no número de médicos que prescrevem produtos à base de canabidiol. Por que você acha que mais médicos estão se tornando favoráveis à prescrição desses produtos?

Acredito em alguns fatores, o primeiro é sobre o acesso a informação sobre uso terapêutico da cannabis, assim como em espaços voltados para profissionais de saúde, como cursos, faculdades, grupos de pesquisas, então tudo isso mostra seriedade sobre o assunto é realmente uma evidência científica.  Vejo que ainda precisamos melhorar, mas sim, está havendo uma desmistificação.

Como a cannabis medicinal se diferencia dos medicamentos tradicionais em termos de eficácia e efeitos colaterais? Em que situações a cannabis medicinal pode ser preferível?

O que a ciência vem mostrando é que a gente tem um sistema chamado endocanabinóide, e a desregulação desse sistema está relacionada a vários tipos de adoecimentos. Então a cannabis vem mostrando um potencial terapêutico para várias doenças, considerando que o sistema endocanabinóide participa de vários processos do corpo, então como ele está relacionado a várias coisas, consequentemente a desregulação dele está presente vários tipos de adoecimento, assim como a cannabis pode ter um efeito terapêutico em relação vários tipos de doença de vários sistemas, como o sistema nervoso central, sistema imune, de outros órgãos ginecológicos, pele etc.

Ela vem mostrando uma eficácia tanto no sentido de qualidade de vida desse paciente, como até mesmo no sentido de atuar na origem de doenças, como Alzheimer, ela mostra um potencial de evitar a progressão da doença e epilepsia também. E realmente tem poucos efeitos colaterais, por exemplo, a maioria das medicações dos anticonvulsivantes tem vários efeitos colaterais e a cannabis os efeitos são, sonolência, e a gente controla. Uma sonolência, pode dar uma alteração do apetite, tontura, efeitos muito mais leves, sem contar que a cannabis não tem risco de overdose, pois não tem receptores canabinóides na parte relacionada a respiração e batimentos cardíacos do nosso corpo. Essa região do cérebro não tem receptores canabinóides, diferente de medicações que a gente prescreve para epilepsia, para dormir, para ansiedade que podem sim causar uma parada cardíaca, a cannabis não tem essa relação. E em relação a eficácia, precisamos estudar mais, porque de fato de evidência científica, várias doenças vem mostrando potencial, mas a evidência robusta que a gente tem, é a epilepsia, pacientes em cuidados paliativos e esclerose múltipla.

Quais são os principais desafios que os pacientes enfrentam ao buscar acesso à cannabis medicinal no Brasil? Quais são as barreiras regulatórias e financeiras que ainda precisam ser superadas?

Desafio em buscar o acesso. Em relação ao desafio, é burocracia, porque para você comprar importado tem que se cadastrar no site da ANVISA. Somada ao fato de importação, correios etc, somado ao fato de ser um produto de farmácia, você precisa de uma receita especial o que seria a receita azul ou amarela, a depender da concentração de thc – O tetra-hidrocarbinol (THC) – é único canabinóide com propriedades psicotrópicas e alucinógenas, capaz de causar dependência química nos usuários.) Alem disso, a questão financeira, tem a questão do frete. 

De que forma a população menos favorecida pode ter acesso a esses medicamentos a cannabis medicinal? 

A gente precisa de uma reparação histórica, porque a própria proibição tem uma questão racial, social, então o acesso da população periférica é uma reparação, pois é um acesso ao direito à saúde. O acesso à  cannabis também é um acesso ao direito à saúde e considerando que essa população é a maior vítima da guerra às drogas. Algumas formas que a gente encontra para esse acesso, é o SUS se envolvendo na causa, alguns municípios têm projetos de lei para o SUS fornecer, mas normalmente compram de importados, compra e fornece pelo SUS, e é um processo burocrático. Ao meu ver as farmácias vivas que estão presente no SUS, que é uma política da instituição, poderia englobar cannabis, seria maravilhoso, se as unidades de saúdes pudessem fornecer, assim como da gente entender que de certa forma por buscar essa demanda, tem judicializado muito, então tem ocorrido muito processo a plano de saúde, pois as pessoas precisam dessa medicação.

A Agência de Notícias das Favelas também teve a oportunidade de entrevistar a também baiana Denise Andrade, Técnica de Enfermagem que tem uma filha chamada Laura, de 7 anos e que foi diagnosticada com Transtorno do Espectro autista com um ano e seis meses de vida para compartilhar sua jornada singular no enfrentamento do transtorno do espectro autista. 

Ao explorar suas experiências, a entrevista busca destacar os desafios enfrentados por famílias que vivem nas periferias, onde o acesso a tratamentos inovadores, como produtos à base de cannabis medicinal, muitas vezes encontra barreiras únicas. A narrativa de Denise oferece um olhar autêntico sobre as transformações observadas na vida de sua filha desde o início dessa abordagem de tratamento, ao mesmo tempo que lança luz sobre as complexidades e triunfos associados a buscar assistência médica em comunidades menos privilegiadas.

Denise Andrade e sua Filha Laura, de 7 anos – créditos-acervo pessoal

Pode nos contar mais sobre a jornada da sua filha com o transtorno do espectro autista antes de começar o uso de produtos à base de cannabis? Quais eram os desafios que ela enfrentava e como isso afetava sua qualidade de vida?

Laura no tempo certo de andar ela não andou, tinha um atraso muito grande de desenvolvimento e para mim foi muito difícil aceitar o diagnóstico . Ela começou a apresentar crises convulsivas e com essas crises, ela passou a tomar medicamentos, mas mesmo assim continuava com as crises e cada vez que tinha era um retrocesso do que a gente conseguia ganhar com as terapias. Foi um desafio muito grande, sou Técnica de Enfermagem e tive que sair do meu trabalho. E isso afetava muito a qualidade de vida de Laura, as crises. Ela também tinha o transtorno do sono, seletividade e muito problema com a coordenação motora. 

E os anticonvulsivantes tinham muito efeitos colaterais, ela não interagia, ficava muito dopada, babava muito, não conseguia interagir com outras crianças e fora a irritabilidade que era muito grande.

Como você descobriu pela primeira vez a possibilidade de utilizar a cannabis medicinal no tratamento do autismo? Quais foram as considerações e preocupações que você teve antes de tomar essa decisão?

Eu descobri o cannabis através do CAPS, conversando com a técnica farmacêutica e com minha irmã. Essa técnica sempre me via pegando as medicações, quando Laura tinha crises, pra ver se médico podia aumentar a dosagem, se o médico podia dar alguma medicação lá, pois era algo que fugia do meu controle. Que não era só crise convulsiva, eram crises de nervoso, qualquer barulho irritava ela. E eu conversando com ela, me explicou que tinha um tratamento que estamos tentando encaminhar que é aromaterapia. Fui ao Hospital das Clínicas e tive conhecimento do canabidiol. E comecei a pesquisar e foi quando encontrei a associação cannabis em Salvador e entrei em contato

Minha preocupação antes de tomar essa decisão era saber se iria tornar um vício, se era viável, como seria esse tratamento, porque num olhar de onde moramos a gente não tinha essa visão que era algo como medicação.

Laura Andrade – créditos – acervo pessoal

Poderia compartilhar os resultados observados desde que sua filha começou a usar produtos à base de cannabis? Como as crises convulsivas e as condições motoras melhoraram?

Os resultados observados pela diminuição da crise convulsiva. Ela chegava a ter de 15 a 20 crises convulsivas e isso foi diminuindo e eu vi uma mudança muito grande na questão do comportamento, ela passou a reagir mais, foi algo surreal . Geralmente ninguém chama para festa por causa do comportamento dela que é muito agitado e eu levei ela no aniversário e as pessoas perguntavam o que aconteceu com ela. Fiquei tão feliz que liguei para a médica para sinalizar que ela estava atendendo quando eu chamava pelo nome, ela estava mais calma. Teve avaliação e as meninas falaram que ela melhorou muito a questão motora, o comportamento, os comandos, foi uma mudança muito grande.

Quais foram os principais obstáculos ou desafios que você enfrentou ao buscar acesso a produtos à base de cannabis para o tratamento de sua filha, especialmente considerando o contexto da periferia?

Os principais obstáculos que enfrentei para ter o produto é a questão de que quando você vem da periferia e você fala a alguém, porque a gente foi criado pensando, foi ensinado que a maconha, o canabidiol era algo ruim, era uma droga e eu não pensava dessa forma, que iria trazer esse benefício para minha filha. Eu participava de palestra, pesquisava muito, questões de tratamento e fui vendo essa mudança em Laura. A busca é sempre árdua porque não está no nosso poder aquisitivo, tem custo muito alto. E a associação cannabis não tem o direito ainda de plantio, de extração do óleo. Fui orientada através da associação cannabis a me inscrever na associação abrace, através de lá eu pedi isenção anual de manutenção da associação que fica um custo de $380 reais e pedi também a isenção do óleo que ganhei, porque hoje eu voltei a trabalhar, graças a esse tratamento que Laura faz hoje, as crises cessaram, Laura estuda regularmente. Teve alta de algumas terapias pois alcançou os objetivos dela. Trouxe uma qualidade de vida para ela poder passear. 

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