Uma entidade chamada Lia de Itamaracá

A cirandeira Lia de Itamaracá na Praia de Jaguaribe. Foto: Ytallo Barreto

Entrevista realizada para o jornal A Voz da Favela por Bruno Vieira e Maria Carolina Alves

Um patrimônio vivo de 75 de idade e mais de 60 de carreira. Mais do que cantora, compositora, dançarina, brincante e cirandeira, Lia de Itamaracá é uma entidade. Nascida em 12 de janeiro de 1944, Maria Madalena Correia do Nascimento foi apresentada ao Brasil pela cantora e compositora Teca Calazans entre os anos 1960 e 1970. Teca e Lia acabaram realizando trabalhos em parceria, como o resgate de músicas em domínio público e composições. Em 2019, Lia recebeu o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É o devido reconhecimento pela contribuição que a cantora faz à cultura brasileira – e ela avisa: homenagens assim ela quer receber ainda em vida, nada de tributos póstumos. A artista nos concedeu a entrevista em Itamaracá, onde fica seu espaço, o Centro Cultural Estrela de Lia. À beira da Praia de Jaguaribe ouvindo as pancadas das ondas do mar, conversamos com ela sobre sua trajetória, a questão atual da cultura em um país regido por pessoas avessas à arte e sobre seus desejos e planos – um deles, o lançamento do seu quarto álbum “Ciranda Sem Fim” em 2019.

A cirandeira Lia de Itamaracá na Praia de Jaguaribe. Foto: Ytallo Barreto

A VOZ DA FAVELA: Mulher, negra, nordestina, cirandeira. O que mais definiria Lia de Itamaracá?

 Lia de Itamaracá: Lia de Itamaracá é uma cirandeira, uma cantora, uma artista guerreira. Todo o meu trabalho eu comecei a fazer desde cedo. Comecei a me interessar por música com 12 anos de idade e com 19 anos assumi a responsabilidade. Eu conciliava o trabalho como merendeira [cantineira] da escola com a cantoria. Não me atrapalhava. Trabalhei 30 anos fazendo merenda para as 270 crianças em dois turnos, manhã (no Estado) e tarde (no município). Eu cantava no Recife, em Itamaracá e fui para o exterior, levando a cultura para lá. Aqui, eu não tenho ajuda, não tenho patrocínio, não tenho nada. Eu tenho que ir para fora para poder levar meu trabalho.

Nos anos 60, você conheceu a cantora e compositora Teca Calazans, que te apresentou para o Brasil. Como foi esse encontro?

A Teca Calazans esteve aqui na Ilha de Itamaracá. Ela se hospedou em uma casa aqui, passando 20 dias de descanso. Eu cresci na casa do lado [Lia aponta para uma antiga construção próxima do Centro Cultural], ela me ouviu cantar e me pediu para cantar uma música para ela. E numa dessas músicas surgiu a ideia do verso “essa quem me deu foi Lia”. Ela disse que queria fazer uma ciranda em minha homenagem.

Lia, você recentemente foi agraciada com o título de Doutora Honoris Causa pela UFPE. Já recebeu o Prêmio Culturas Populares do extinto e saudoso Ministério da Cultura. Como é para você ter o reconhecimento da elite cultural e do mundo acadêmico da sua produção de cultura popular?

Esse título é reconhecimento do meu trabalho com a música, de trabalhar muito tempo. Eu sou resistente mesmo, eu enfrento a parada, e para mim quanto mais homenagens vierem, melhor. Mas quero que as homenagens sejam feitas enquanto eu estiver viva.

Foto: Ytallo Barreto

Como é na visão da Lia de Itamaracá viver de cultura popular no Brasil?

A minha visão é boa. Desde que a pessoa me ajude e valorize meu trabalho, que aí a coisa anda. Se você é um artista, ninguém lhe valoriza, ninguém lhe ajuda, como é que você sozinho pode trabalhar com a arte? Para mim, trabalhar com cultura está sendo ótimo.

Em reportagens, você menciona o reconhecimento da sua carreira fora de Pernambuco e a dificuldade que o estado tem de fazer jus à sua trajetória. Como é isso atualmente? Isso ainda persiste?

Isso é mais uma questão do governo [estadual de Pernambuco]. Ele não valoriza, não incentiva o trabalho, de quem é raiz do local. Agora, quem vem de fora é valorizado, recebe no tempo certo e o local passa anos e anos para receber. O Estado assina uma lei de reconhecimento da Ciranda, mas a ciranda está parada, sem incentivo. Como é que é possível isso? Está tudo parado aqui em Itamaracá. Nós temos o espaço cultural ali, o [deputado estadual] Guilherme Uchôa [falecido em julho de 2018] deu uma emenda parlamentar para melhorar o espaço. Foi feito o palhoção [tenda feita de madeira e palha] que fica do lado do centro e resto do dinheiro ficou na Prefeitura para ela terminar as reformas. Até hoje não terminaram. Como é que pode? A Prefeitura não tem me dado apoio, não tenho nada da Prefeitura de Itamaracá.

Tendo em vista esse contexto que estamos vivenciando aqui – o derramamento de óleo no litoral nordestino, os comentários do atual presidente e outras questões relacionadas –, o que você tem a comentar em relação a esse cenário?

Eu não sei o que esse presidente quer fazer com a cultura. Porque ele não gosta da cultura. Ele deveria entrar em contato com o povo da cultura para ver o que é a cultura, porque ele não está vendo. Ele quer acabar com uma coisa que já existia, como é que pode uma coisa dessas? Mal sabe ele que a cultura é tão boa.

Perto de completar 80 anos de idade e mais de 60 de carreira, quais são seus próximos passos?

Já que a velhice já está chegando, o meu maior desejo é ter um capital de giro com o qual eu possa me virar. Eu sou aposentada como merendeira da escola da ilha, tenho o título de Patrimônio Vivo, mas se tiver mais recurso para eu ir juntando para esperar a velhice tranquila e calma eu quero. É a minha esperança. E quero também fazer o lançamento do meu CD para dar continuidade ao trabalho.

“Ciranda sem fim”, o mais recente trabalho de Lia, lançado em novembro de 2019. Arte: Divulgação