Ensaio sobre a cegueira relativa

Imagem: Reprodução internet.

Esta é uma tentativa de escrever sem óculos, um exercício de andar quase às cegas, tateando o ar à cata de apoio, mas vou bem na empreitada, a julgar pelos poucos erros de digitação. Adiei por breve tempo a visita ao camelô da esquina para usufruir um pouco mais a alienação momentânea e admito até um prazer inédito que me fez sentir igual ao cidadão comum preocupado com as contas mensais e nada mais. Concluí que a cegueira parcial tem lá suas vantagens.

Por alguns dias andei desligado das atrocidades e das vilanias dos homens de bem no Brasil e no mundo. Tomei conhecimento, por alto, dos mais de duzentos chilenos atingidos no olho por balas de borracha da polícia durante os protestos de rua. Vi, embaçada, a imagem do novo partido brasileiro, creio que Aliança pelo Brasil, formada inteiramente por cartuchos de balas de grosso calibre.

Soube, também, que a PF agora vê indícios da participação da Carluxo no assassinato de Marielle e Anderson e que a justiça do Rio de Janeiro abriu novo front nas investigações contra Flavinho. Sorri com meus botões ao imaginar que enquanto perco parcialmente a capacidade de enxergar, a polícia parece recuperar a sua.

Sem meus óculos de ler estou mais parecido com a população brasileira, que tampouco enxerga um palmo adiante do nariz. Artigo da antropóloga Valeria Brandini veiculado no Facebook é esclarecedor sobre o pensamento médio da nossa sociedade. Somamos apenas cinco por cento os que formamos a parte mais desenvolvida culturalmente, que aceitamos a diversidade e os avanços civilizatórios. Leiam as palavras de Valeria:

“O brasileiro médio nunca foi “bonzinho”, como dizia Kate Lyra nos quadros de humor dos anos 80. O brasileiro médio “odeia viado”, odeia pobre — mesmo quando é pobre — não odeia “a pobreza”, odeia “o pobre”, divide as mulheres entre as putas e as mulheres pra casar, é racista e de um “racismo cordial” nojento, pois diz que tem amigo negro, mas não se importa que a polícia mate jovens negros inocentes. As mulheres são AS grandes machistas, pois o machismo feminino é o que forma homens e mulheres machistas na socialização primária das crianças e elas NÃO QUEREM se libertar dos padrões coercitivos do machismo, elas querem manter esses padrões, pois acreditam que nele elas tem privilégios (mesmo tomando porrada de machista e com um índice altíssimo de feminicídio — vivem uma eterna síndrome de Estocolmo) — já no feminismo, teriam que ser responsáveis por suas próprias vidas, teriam que ter autonomia existencial e isso é novo e assustador.”

O pequeno artigo da antropóloga conclui aquilo que sabemos, mas, muitas vezes, não conseguimos realizar, seja por bloqueios próprios, por preconceitos ou por outra razão. É preciso mostrar empatia para começar a desconstruir mentiras e conceitos arraigados no brasileiro médio. Não é tarefa para uma eleição, um voto, é para a vida toda.

Como exemplo, volto à investigação sobre as rachadinhas de Flávio Bolsonaro no Rio de Janeiro: qual leitor ou leitora deste texto ainda duvida da veracidade das suspeitas sobre ele? Apesar da imprensa – mesmo a grande mídia – noticiar o prosseguimento das investigações, a massa das pessoas nas redes sociais ou acredita piamente que a esquerda quer é derrubar o pai dele, ou prefere não ver a realidade, como eu sem meus óculos.

Quem tem dúvida do envolvimento dos Bolsonaro na morte de Marielle e Anderson? Até piadas circulam ridicularizando as versões absurdas, como se o encadeamento de fatos já apurados pela polícia não fosse bastante para fechar o cerco à casa número 58 do condomínio Vivendas da Barra.

E o Queiroz, sempre ele, incólume, ileso, impenitente, o que nunca foi prestar os esclarecimentos à polícia, o que fez  do mais caro hospital do país hotel cinco estrelas com a cumplicidade da direção jamais exposta a uma explicação, o Queiroz das rachadinhas, gravado em óbvias transações nebulosas de apropriação de dinheiro público do Senado Federal através de nomeações falsas? Onde está Queiroz?

O Brasil não enxerga nada demais, insiste em apontar para o passado para responder com a eterna pergunta “e o PT?”. Ora, Lula está solto, babaca, o Brasil não pegou fogo e seu partido está pagando e purgando os erros dos descaminhos que seguiu, ostenta a maior bancada na Câmara dos Deputados e continua influente e respeitado em nível internacional, em oposição a Sergio Moro, cuja estrela antes de brilho e fulgor mostra-se cada dia mais opaca e esmaecida.

Enfim, fui ao camelô pouco antes do fiscal da prefeitura e adquiri meus novos óculos graças aos quais voltei a acompanhar melhor a nossa realidade.

Lamentável realidade, aliás: o ministro da educação acusa universidades públicas de plantar maconha, o do meio ambiente segue aspergindo gasolina em volta das fogueiras, a ministra dos direitos humanos propõe aumentar a família brasileira para seis ou mais filhos por casal como forma de combater a diversidade e o avanço do islamismo sobre o mundo cristão.

No parlamento, prossegue a discussão sobre a volta da prisão em segunda instância para prender Lula pela segunda vez, com todos os atores envolvidos providencialmente esquecidos de que a presunção de inocência até o trânsito em julgado é cláusula pétrea da constituição, não podendo ser alterada senão por convocação de assembleia constituinte.

Todos os dias falam do assunto, mostram prognósticos favoráveis na Câmara e no Senado, dá-se como certa a aprovação. Ninguém levanta a questão da inconstitucionalidade.

E ainda vem o antigo senador Cristóvam Buarque alegar que se a escravidão fosse cláusula pétrea da primeira constituição, de 1823/24, estaria hoje em vigor. E pensar que esse homem foi reitor da UnB e ministro da educação do Lula!

Enquanto isso, o presidente da república esbanja dezenas de milhões em cartões corporativos, não dá satisfação a ninguém e ruma célere para o autoritarismo com a volta do AI-5 defendida pelo filho Eduardo, mas com outro nome, o de “excludente de ilicitude” que transformará o país em terra de ninguém, em nome da segurança.

Para encerrar, antes que eu jogue pela janela meus novos óculos, recorro mais uma vez à antropóloga Valeria Brandini, que encerra seu texto com uma recomendação para o caso de nenhuma argumentação furar o bloqueio da obtusidade córnea rodrigueana:

“E aprenda a mandar à merda quem precisa ser mandado à merda, sem medo de que não gostem de você, pois nada é mais precioso do que a integridade, e integridade é ser inteiro no que você acredita.”