Um grito pela liberdade

Créditos - Bruno Dias

A vida de uma refugiada de Uganda

A sensação era de duas mãos pressionando seu pescoço, queimando a pele pela brutalidade e impedindo a entrada de ar nos seus pulmões. Estava tonta, trôpega, jogada sob a lama, embebecida pela responsabilidade de uma vida cinza e encalhada. Se sentia exausta de só caminhar e chegar a velhas verdades: não há vagas. Não suportava mais engolir seus gritos e não digeri-los.
Negra, mulher, forte, 28 anos, Allen Namatovu olhava para cada canto de sua casa, lá em Uganda, na África, em busca de uma absolvição. No seu armário, no meio de suas roupas, via a pasta com alguns de seus diplomas: o de contadora, na Makerere University, a melhor universidade do país, e o de proficiência em inglês.
– Para quê estudar tanto? De nada tem servido tanto diploma em um país sem emprego, sem salário digno, sem estrutura para abrigar meus sonhos. – pensava.
Insistia, paralisada em seus passos conduzidos, e assim permanecia sem ar, enforcada.
– Só isso? Como viver com tão pouco?
No escritório de contabilidade do Mengo Hospital, na cidade de Kampala, em meio aos doentes, aos torturados, aos violentados, olhava para seu salário de quinhentos mil xelins, 500 reais, e sentia a necessidade de barrar o escasso, possivelmente decidido em mesas cheias de uísque, egos e charutos caros de seus governantes.
– É tão caro se qualificar para permanecer no mercado; e ele remunera muito pouco. Isso não é justo. – refletia.
A vida de “excesso” de escassez era como mil pregos fincando sua pele de mulher sonhadora. Não queria mais viver uma vida que não escolheu, expressar o que não viveu por causa das ditaduras; queria respeito, liberdade, realização. Sonhava em esbanjar seu sorriso simétrico, abundante e claro nas ruas de um país livre e democrático. Imaginava ter sua personalidade ao vento e seus pensamentos soltos no ar.
– A saudade será imensa, mas preciso lutar por uma vida melhor. Muitos amigos deixarei para trás, mas lá, no Brasil, vou encontrar outras pessoas para suprir a dor de deixar tudo.
Largou tudo. Ser dona de si mesma era questão de tempo. No avião, durante as 14 horas de voo, o sol entre nuvens prenunciava um novo tempo.
– Que valha a pena cada centavo que guardei para vir a esse país romper com minha antiga vida.
Numa manhã quente do verão de 2017, lá do alto, em sua estreita poltrona, assistia ao avião preparar para a aterrisagem. Via a cidade de São Paulo pequena, com suas estreitas ruas, repletas de carros em movimento. Pareciam fragmentos de um corpo humano, com o sangue correndo em suas veias. Naquele instante, Allen pensou que agora tudo seria assim: o sangue seria vivo, veloz; não estaria derramado pelos conflitos das inúmeras ditaduras que viveu no país e que a obrigaram a conviver com inúmeras perdas e derrotas.
Assim que pegou sua mala, percebeu que a hora chegou. O fim de sua antiga vida não era mais um plano, era realidade. Caminhando pelo aeroporto de Guarulhos, observava atentamente as diferenças do país. Mais estrutura, inúmeras pessoas, diferentes línguas e comidas. Ali, ainda conseguia falar inglês.
– Preciso de um quarto para morar!
– Não se preocupe, conheço um.
Em uma pequena pensão só para mulheres, lá na periferia do bairro do Tucuruvi, deu os primeiros passos.
– Oi? Não entendi. Desculpa, não consigo te entender.
Sua maior dificuldade é o idioma.
– Falar português é muito difícil, poucas pessoas aqui falam inglês, mas me manterei calma. Tudo vai dar certo. É só uma questão de tempo. Aqui é muito melhor que Uganda, aqui é possível respirar, aqui é possível gritar nossas insatisfações. – diz.
Ela respira. A sensação de peso em seu pescoço deixa marcas, mas não bloqueia o oxigênio.
Em um pequeno hotel, no centro de São Paulo, o emprego.
– Você pode começar a trabalhar conosco como faxineira, até aprender o português. – disse em inglês a gerente.
– Ótimo, ótimo, é um começo.
Lava pratos, banheiro, arruma quartos. Trabalha mais de oito horas por dia, mas sente-se feliz.
– Ganho mil e duzentos reais, mas está bom. É muito melhor do que viver em um sistema cruel que não te deixa nem reclamar. É só o começo, logo vou aprender o idioma daqui e caminhar rumo às minhas qualificações.
Sentada na escada cinza, em frente à imensa cruz da Igreja Nossa Senhora da Paz, no Glicério, sorri na finalização de sua história.
– E você? Você ama o que faz? – pergunta a Bruno, o jornalista da matéria.
– Sim. – ele responde.
– Bom! O que importa é amar o que faz e ser livre. Livre.

*Texto publicado no jornal A Voz da Favela edição de Agosto