Barbarize, da Favela do Bode, em Recife, expande o manguebeat

SobreVivências Periféricas é o titulo de um dos trabalhos lançados pelo duo musical Barbarize, da Favela do Bode, em Recife, um grito de resistência e resiliência diante do cenário de alto vulnerabilidade em que vivem os moradores da localidade. Mas este é só um dos atos de resistência e força da banda que merece ser conhecida nacionalmente.

Com fortes referências do afrobeat, afropop e afrotrap, Barbarize utiliza uma comunicação visual pulsante para expressar os anseios da juventude preta e periférica e potencializar o território da favela.

A banda é formada pelo casal Bárbara Vitória Espíndola Bezerra (Babi ) e Yuri Domingos da Silva (Yuri Lumin). 

Além da dupla, o projeto conta com a participação de Jéssica Jansen (produtora), Victor Marinho (coreógrafo e bailarino), Yara Medusa (coreógrafa e bailarina) DeLiira (DJ), João Zarai (técnico de som) e Mila Barros (pintura corporal).

Alguns integrantes são moradores da periferia do Bode, Camaragibe, Lagoa do Itaenga e Várzea.

Cobra, a música mais recente do Barbarize, traz linguagens como música, teatro, dança, performance, poesia e moda. Resgata o empoderamento, reforçando mensagens de resistência, reconhecimento, pertencimento e exaltação ao povo preto e periférico.

“Lançar um clipe é sempre um momento muito emocionante, principalmente para artistas periféricos como a gente”, afirma Babi Barbarize.

O clipe foi realizado pelo Selo Estelita e é permeado pelo arquétipo da serpente, animal que troca de pele, simbolizando a renovação e a regeneração. Barbarize tem outros singles de impacto, como “Spray de Pimenta” e “KiCalor”.

De acordo com a divulgação do trabalho, a música Cobra faz uma crítica à cena musical pernambucana, que “muitas vezes não se fortalece nem se apoia, sendo uma resposta simbólica da dupla para as violências vivenciadas ao longo destes anos com o projeto Barbarize”.

Crédito: Thays Medusa

Barbarize e a contracultura em Recife

De forma mais ativa, Barbarize se consolida a partir de 2018. Sobre a cena musical independente, feita, principalmente, na periferia, a dupla destaca a dificuldade de ter acesso a espaços de eventos fora da favela.

“Precisamos correr três vezes mais pra sermos notados; é como se a gente não pudesse errar”. Mesmo assim, vem crescendo o número de artistas e coletivos que resistem e criam oportunidades, reorganizando uma cena musical imposta.

Barbarize reforça a importância do movimento de cultura na cidade, cutuca na ferida e mostra que ainda falta incentivo e oportunidade. Pernambuco é um berçário cultural, em cima do mangue, das palafitas.

Nesse cenário, Barbarize se torna uma referência na periferia, tendo como principal influência o Mangue Beat, movimento de contracultura que surgiu em Recife, criado pelo pernambucano Chico Science, em 1991, com o objetivo de promover uma renovação no cenário cultural e artístico do estado de Pernambuco.

O termo manguebeat é fruto de uma junção da palavra mangue, que designa um ecossistema típico da nossa região, com a palavra beat, do inglês, que significa batida. O caranguejo, que é capturado e vendido por trabalhadores da região, tornou-se o símbolo do movimento cultural.

Cena captada no carnaval-BRZ, em Recife. Cena musical é forte e se reorganiza. FOTO: Olhardamedusa

Ampliando o legado de Chico Science

Para a professora Maria Eugênia Lacerda, de 45 anos, Barbarize perpetua o Movimento Manguebeat, que este ano faria 30 anos. “Chico Science, em sua forma física, partiu, mas a sua obra, as suas atitudes revolucionárias, as suas ações, seguem presentes nas letras de Barbarize”.

Ainda segundo a professora, “de uma forma poética e com uma estética afrofuturística, nos convida à reflexão. Em suas letras, partilham processos de um recorte social que, ao mesmo tempo, não isola. Ao contrário, expande e integra”.

Para Thiago Lima Silva, 38 anos, educador social e idealizador do projeto Voz Negra, “é de extrema importância trabalhos como Cobra, justamente por inspirar adultos e jovens negros da periferia a ocuparem posições de destaque e reivindicarem seus espaços, tanto no mercado de trabalho quanto em outros locais. Embora tenhamos um longo caminho a ser percorrido, referências como a de Barbarize nos conecta com os nossos e motiva para seguirmos em frente.”

Para a articuladora da Favela do Totó, em Recife, Yane Mendes, falar de Barbarize é falar de sonhos possíveis. “É sobre esperança; tem que ter uma visibilidade e conseguir chegar muito mais no nosso povo”.

Ainda segundo Yane Mendes, o duo Barbarize “traz uma produção de qualidade, uma produção técnica que não perde o nosso sotaque; que assume as nossas gírias, o nordeste, Pernambuco e a periferia de Recife. Estamos falando de música, teatro, dança, audiovisual potente e criativo e afrofuturismo”.

Ela também questiona a falta de repercussão de trabalhos como o feito pelo Barbarize. “Como é que o Brasil não valoriza isso? Como é que Barbarize ainda não é algo nacional, pautado nos grandes festivais? Por que que a gente não utiliza essas músicas que falam tanto sobre a realidade para debater a pauta climática?”

Yane Mendes se refere à música KiCalor, single lançado em 2021, que aborda a questão climática.

Crédito: Thays Medusa

Ideias climáticas do Barbarize

Recentemente, Barbarize participou do evento Noite das Ideias, em celebração ao Dia Nacional da Conscientização sobre as Mudanças Climáticas. Durante a apresentação, a banda enalteceu a beleza preta da periferia de Recife.

O público era composto, majoritariamente, por estudantes do Instituto JCPM, projeto social que atende jovens de periferias oferecendo cursos de qualificação profissional e formação social com temas transversais.

Durante o evento, aconteceram conferências, encontros, fóruns e mesas-redondas. Também exibições, apresentações artísticas, exposições, concertos e oficinas para jovens. A ideia foi misturar os diferentes campos do pensamento, das artes, das ciências e da sociedade civil.

Neste ano, o tema internacional do evento foi a pergunta Mais? O objetivo foi questionar a dinâmica da sociedade de consumo e a acumulação como essência da modernidade. Um ano antes dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, o tema da Noite das Ideias 2023 ecoou o lema olímpico Mais rápido, mais alto, mais forte – juntos.

Crédito: Thays Medusa

Favela do Bode, periferia de Recife

Localizada na zona Sul do Recife, a Favela do Bode fica dentro do Bairro do Pina, com casas de palafitas, feitas de madeira, com cobertura de lata e plástico. A maioria das residências não dispõe de banheiros e a favela não tem esgotamento sanitário. Tem 97% da população abaixo da linha de pobreza.

A Favela do Bode está localizada numa das áreas de maior pressão imobiliária de Pernambuco, próxima do Shopping Rio Mar , que foi construído em 30 de outubro de 2012, onde passa a Via Mangue.

O conceito de direito à moradia digna é definido e reconhecido internacionalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU) e consta na Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948. Também é discutido no Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1991.

Comunidades como o Bode dão ao Recife o título de quinta cidade brasileira em número de invasões e favelas, segundo o IBGE.

Local onde está a Favela do Bode é foco de pressão imobiliária. FOTO Livroteca Brincante do Pina/Coletivo Cabras

Para o mediador cultural e intérprete de Libras Liverson Paiva, de 22 anos, Barbarize é a negritude, identidade e potência. “Por muito tempo, o povo preto e da favela foram obrigados a ficar calados. O Barbarize, através da música, denuncia o apagamento e a violência que essa população sofre diariamente”.

Liverson ainda afirma que o povo preto de favela só precisa de uma oportunidade para crescer e mostrar ao mundo que são capazes. As letras das músicas do Barbarize, de uma forma ou de outra, mostram potência e alegria que o povo preto tem.

“Como jovem preto que se identifica com a poesia das letras, espero que cada vez mais as barreiras sejam quebradas, que os caminhos estejam abertos e que eles possam crescer”.

Os prédios querem engolir a favela. FOTO: Livroteca Brincante do Pina/Coletivo Cabras

A jornalista e escritora Jaqueline Fraga comenta sobre a visão da maioria da população sobre a cultura negra e a favela. “A gente vive em uma sociedade que desde sempre diminuiu e inferiorizou tudo o que é relacionado à história e à cultura negra. Isso se reflete, até hoje, com artistas e profissionais da cultura negros que continuam enfrentando obstáculos estruturais para alcançarem seus espaços e são muitas vezes invisibilizados”.

Ainda segundo ela, “em meio a essa realidade, é imprescindível que nós, enquanto sociedade consumidora de cultura, enxerguemos e entendamos a importância de valorizarmos a produção cultural que vem sendo produzida por profissionais negros e periféricos“.

Ela finaliza com a seguinte observação: “É sobre espaços que precisam ser ocupados e sobre valorizações que precisam ocorrer, porque, quando damos vez e voz a esses artistas, estamos dando vez e voz a todos aqueles que eles representam”.

Tatiane Feitosa

@tatianefeitosa_contacao

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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