Saneamento básico na favela: sonho ou realidade próxima?

Moradores jogam lixo no córrego de Americanópolis em São Paulo
Moradores jogam lixo no córrego de Americanópolis em São Paulo - Foto: Jacqueline Silva
Moradores jogam lixo no córrego de Americanópolis em São Paulo
Moradores jogam lixo no córrego de Americanópolis em São Paulo – Foto: Jacqueline Silva

De acordo com dados levantados pelo Instituto Trata Brasil, foram investidos aproximadamente R$ 65 bilhões nos serviços de saneamento básico (água e esgoto) entre 2014 e 2018 no Brasil. Uma média de R$ 12 bilhões ao ano. São Paulo foi o estado que mais investiu em 2018, cerca de R$ 5 bilhões, aproximadamente metade de todos os investimentos do país. No entanto, os recursos ainda são insuficientes.

Quase metade da população (47%) do Brasil continua sem acesso a sistemas de esgotamento sanitário, o que equivale a quase 100 milhões de pessoas. Mais de 16% da população, ou cerca de 35 milhões de pessoas, não têm acesso à água tratada, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Os dados, divulgados neste ano, são referentes a 2018.

A cabeleireira Jaqueline Gomes de Jesus, de 25 anos, mora há sete no bairro Americanópolis, periferia de São Paulo, apesar de ter água e esgoto tratados, ainda enfrenta problemas. Um deles é a interrupção no abastecimento de água todas as noites a partir das 22h. Ela organiza toda sua rotina antes desse horário para não ter problemas com relação à higiene da casa e outras tarefas que necessitam de água.

Outro problema é o córrego de Americanópolis, que é visto como uma grande lixeira a céu aberto por alguns moradores do bairro. “A prefeitura limpa o córrego com frequência, mas não adianta porque o pessoal continua jogando lixo. Sempre que tem uma chuva mais forte, o córrego transborda e quem mora mais perto dele tem que tirar as coisas correndo para não perder tudo”, desabafa a cabeleireira.

Em 2018, foram registrados pouco mais de dois mil óbitos e 230 mil internações por doenças de veiculação hídrica, como diarreia aguda, leptospirose e hepatite A, segundo dados do DataSUS. Jaqueline não conhece ninguém que adoeceu, mas aponta que algumas ações da comunidade resultam no aparecimento de ratos e odor nas casas. “Tinha uma caçamba que ficava na rua para colocar lixo, mas recentemente os próprios moradores começaram a queimar as coisas na rua, o que deixa o espaço com muito mau cheiro”, reclama.

O integrante do Grupo de Trabalho Água e Esgoto da Rede Favela Sustentável, Otávio Alves Barros, em entrevista ao jornal A Voz da Favela, explica sobre o novo marco legal do saneamento básico e seus impactos nas favelas.

O que é o novo marco do saneamento básico?

Seria água e esgoto tratados para 99% da população com meta de conclusão até 2033. Essa é uma questão nova para as comunidades

O que a difere de outras leis?

O financiamento envolvido e o prazo a ser cumprido, que em outras não tinham.

Quais os prós e contras desse projeto?

Os prós seriam o fornecimento de água e acesso à rede de esgoto em muitos locais onde ainda não têm, isso vai acabar ajudando muita gente. No entanto, falando um pouco da estrutura das favelas do Rio de Janeiro, onde atuamos, são muito adensadas e em morros, algumas na baixada, essas são abaixo do nível do mar e normalmente ocorrem alagamentos. Por isso, as canalizações, as redes de tratamento teriam que ser muito bem elaboradas para funcionarem de fato. Teria que mexer na questão do saneamento como um todo e não é o que vai acontecer.

Como você enxerga a questão do financiamento das empresas privadas para realização dessas obras?

Eu acho que isso vai atrapalhar bastante, pois quando se terceiriza os setores para algum tipo de trabalho, acaba funcionando em alguns lugares e em outros não, mas no final todos pagam a conta. Além disso, os acordos não ficam claros porque, após 2033, as empresas têm ainda sete anos para cumprir a meta. Será que haverá um acréscimo de valores ou elas terão que concluir com o valor que foi disponibilizado para o primeiro prazo?

Como a implantação do marco vai afetar as favelas?

Em várias favelas do Rio, não se paga água porque as empresas não instalaram os hidrômetros, em outras comunidades a água é captada de nascentes ou florestas. Quando se vive em um lugar que tem água, mesmo que às vezes falte, mas não se paga nada por ela, você acaba se acomodando. Quando passar a sair do seu bolso um valor, que não é barato, para canalizar, as pessoas não vão aceitar.

Quais investimentos em saneamento deveriam ser feitos nas favelas do Brasil?

A primeira parte seria educação básica, pois a partir daí você começa a conscientização das pessoas das favelas da importância de não jogar lixo, de fazer tratamento do seu esgoto, de ter água encanada porque é bom para saúde. E tem uma parte que tem que ser feita pelo poder público, ser mais claro sobre o planejamento e desenvolvimento do tratamento que vai ser feito nas localidades. Existe um distanciamento do poder público, mas a ideia é encurtá-lo, até mesmo por conta do marco legal.

Como o Grupo de Trabalho Água e Esgoto tem atuado nas favelas?

No Vale Encantado, que é uma favela do Rio, temos feito um trabalho junto com a comunidade, onde já foi instalada uma estação de rede de tratamento de esgoto, construída por meio de parcerias, para atender a demanda da comunidade.

O grupo pretende ampliar esse projeto para outros lugares?

Estamos estudando levar essa tecnologia a outras comunidades e até para outros locais do Brasil, pois cada lugar precisaria de sua adequação pelas diferenças de territórios, uns por serem íngremes, outros de baixada, campo, quilombos ou aldeias indígenas.

Matéria originalmente publicada no jornal A Voz da Favela de outubro.