Privacidade como tática contra o fascismo

O conceito de privacidade, em relação à dados pessoais, é primordial para a luta contra o fascismo (no sentido literal da palavra). Na Europa, onde o fascismo nasceu e cresceu, autoridades abusarem de informações pessoais é uma ameaça constante. Só porque houve uma luta histórica para erradicar esse tipo de regime violento, não significa que combater tendências fascistas é uma coisa do passado- basta olhar para o nosso 1º turno. A tecnologia evolui em uma velocidade alarmante, e atinge todo o mundo. Acompanhar as implicações políticas globais dessas mudanças é essencial para garantir que a história não se repita, particularmente no Brasil.

Algumas dessas mudanças envolvem como os dados pessoais são processados e armazenados. Nós nos tornamos cada vez mais dependentes de plataformas de mídia social; a Internet se expandiu em uma complexa rede de instituições e empresas; e dados estão sendo armazenados exponencialmente mais na “nuvem” do que em hardwares individuais. Essas inovações nos forneceram novos tipos de conexões, mas também forneceram novas brechas de vulnerabilidade em campos pessoais e políticos. Essas brechas podem seriamente minar direitos humanos básicos, e há sérias dúvidas sobre se a estrutura legal que está sendo implantada pode ser efetiva para assegurar esses direitos.

Uma análise de uma das deficiências da atual estrutura legal usada para garantir direitos básicos de usuários (a inconsistência com a qual estabelecemos responsabilidade) foi apresentada na primeira semana de outubro na Amsterdam Privacy Conference 2018 (Conferência de Privacidade em Amsterdam). No atual cenário de redes on-line, rastrear quem tem seus dados é uma Matrioska de labirintos, onde chegar à algum lugar significa apenas encontrar novos conjuntos de potenciais controladores de dados. Em seu trabalho mais recente, René Mahieu (et al.) argumenta que, nesse contexto, a lei não é clara ao atribuir responsabilidades legais à empresas, instituições e governos.

“Atualmente estamos testemunhando o que Zuboff chama de ascensão do “Capitalismo de Vigilância”. Ele é caracterizado por uma nova forma de extrema concentração de poder por aqueles que controlam as plataformas e os dados. Se não forçarmos esse poder concentrado sob o controle de novas formas de freios e contrapesos, ele será prejudicial à democracia e à autonomia individual”. (Rene Mahieu)

De acordo com Mahieu (et al.), várias tentativas de tornar este tipo de aplicação da lei mais eficaz pelas Autoridades de Proteção de Dados, tribunais, e até mesmo a introdução de uma nova lei na Europa falharam em seus objetivos. Mesmo assim, o sistema jurídico Europeu tornou-se a principal referência para o processo legislativo na América Latina. O Brasil acaba de adotar uma versão praticamente copiada e colada do GDPR (Regulamento Geral de Proteção de Dados) como esforços de responsabilização pelo uso de dados. Como uma das maiores democracias do mundo, e como o país “mais influente” da América do Sul, ainda estamos para ver se esta nova Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) será usada para reparar alguns defeitos nessa chamada “democracia falhada”.

A LGPD foi aprovada em agosto de 2018 e imediatamente nos confronta com a seguinte questão: ela será usada para proteger as liberdades pessoais e políticas da população brasileira, ou foi aprovada justamente porque talvez não as proteja completamente? Se essa nova lei de proteção de privacidade é uma tentativa de equilibrar a maneira completamente desequilibrada em que a lei funciona, isso está acontecendo tão devagar que no momento em que puder ser usada para ajudar as pessoas que mais precisam, elas já teriam servido sua sentença e teríamos um novo conjunto de problemas (tecnologias, mecanismos, e novas politicas) com os quais lidar.

A lei não entrará em vigor antes de 2020, enquanto 23 presos políticos no Brasil precisam de proteção agora, além da constante ameaça para todos e todas nós militando agora. Eles e elas foram condenados(as) com base em dados pessoais coletados online e por telefone que pintam uma imagem distorcida de planos criminosos que nunca foram realizados (uma investigação conduzida pela Delegacia de Repressão aos Crimes Informáticos). Com nosso prospecto politico, dados pessoas de muitas mais pessoas poderão ser usados pra muito pior.

Essa preocupação com uso de dados pessoais das pessoas para monitorar, intimidar, aprisionar, ou até mesmo matar pessoas marginalizadas e militantes é muito comum na Europa. A conferência em que Mahieu apresentou sua pesquisa hospedou uma grande maioria de trabalhos relacionados à Direitos de Privacidade, mas foi estranhamente financiada pelas próprias empresas mais propícias à evadir a privacidade de indivíduos e à fazer mau uso de dados pessoais. Por exemplo, o Google, grandes empresas de telefonia celular, e até mesmo uma agência de coleta de dados para o Exército Estadunidense foram responsáveis pela realização deste evento, o que provocou resistência de certos acadêmicos.

Membros dos grupos DATACTIVE e Data Justice Lab publicaram uma carta aberta um mês antes da conferência enfatizando que, “no contexto que foi descrito como a dominação neoliberal da educação superior”, transparência em relação ao financiamento corporativo e “um claro conjunto de princípios para patrocínio” é da maior importância. Sem isso, participantes e organizadores desse campo acadêmico inevitavelmente desempenhariam um papel nos esforços para “neutralizar ou minar considerações com Direitos Humanos”.

Houveram vários patrocinadores problemáticos, mas o que se destacou no protesto foi a Palantir, uma empresa de análise de dados dos Estados Unidos afiliada ao Exército e à iniciativas desumanas de formas de controle da fronteira:

“Proporcionar Palantir com uma plataforma, como patrocinadora de uma proeminente conferência acadêmica sobre privacidade, prejudica significativamente os esforços para resistir a implementação de vigilância militar contra migrantes e comunidades marginalizadas já afetadas pelo policiamento abusivo.” (Carta: “Porque não estaremos na APC 2018”)

A relevância política de Direitos de Privacidade não é exclusiva de um país ou continente. Esses direitos são essenciais para combater formas violentas de controle praticadas por Estados em todas as partes so mundo; que visam beneficiar apenas uma hegemonia ao invés do povo como um todo. A Europa e as Américas estão conectadas de maneiras que transcendem o mundo virtual, mas essas conexões foram inegavelmente exacerbadas nesse cenário tecnológico em que existe em constante mudança.

Só para você não terminar este artigo em completo desespero, há algumas coisas que podemos fazer para remediar a situação; se não for uma cura, pelo menos controle de danos. Há valor em exigir o seu direito de acesso à informações sobre onde estão seus dados pessoais, com quem estão sendo compartilhados, e que dados são esses (por exemplo, endereço, nome, data de nascimento, etc.). Denunciar as instituições que recusam ou evadem o pedido pode alterar o desequilíbrio de poder entre cidadãos e organizações/instituições em favor do cidadão. Talvez nosso maior trunfo na sociedade capitalista seja nossa demanda como consumidores e, consequentemente, nossa motivação para não querer ser multado ao lado de potenciais parceiros de negócios. Resumindo: faça o possível para manter o controle de seus dados pessoais, e não faça negócios com empresas suspeitas.

Juntos e juntas podemos combater o fascismo no dia-a-dia, não só nas urnas.

#ELENÃO

Referências por ordem de menção:
(Infelizmente a grande maioria em Inglês)

Fascismo, definição literal.

Nascimento do Fascismo.

Crescimento do Fascismo.

Fascistas abusando de dados pessoais historicamente.

Facebook e exemplo de implicações políticas pelo mundo (Myanmar).

Declaração de Direitos Humanos das Nações Unidas (Foco no artigo 12)

Conferênca de Privacidade Amsterdam

Trabalho mais recente, René Mahieu (et al.)

René Mahieu

Zuboff

Working Party

GDPR (General Data Protection Regulation)
https://eugdpr.org/

ECJ

LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados)

“Democracia Falhada”

Desigualdade na aplicação da Lei no Brazil

Sobre os 23

Patrocinadores da Conferênca de Privacidade em Amsterdam

Palantir (oficial)

Palantir (The Intercept)

“Why we won’t be at APC 2018” (Por que não estaremos na APC 2018)

Pesquisa anterior de René Mahieu sobre exigir o seu direito de acessar.

Coding Rights

Direitos na Rede