Pequena África passou de região de conflitos para área de relevância histórica no RJ

Falar de um espaço como a Zona Portuária do Rio de Janeiro, localizada no centro da cidade, beirando a Baia de Guanabara, vai além do massacre desumano ocorrido no período escravagista, a começar pelo fato de que, no século 16, escravizados trouxeram a cultura culinária, musical e têxtil para o nosso país, entre outras contribuições.

O tráfico negreiro acontecia na região no Cais do Valongo, localizado no bairro da Saúde. Os negros recém-chegados eram desembarcados e comercializados como mercadorias, sem nenhum pudor por parte dos colonizadores e senhores de engenho. Tinham seus nomes trocados e histórias apagadas pelos seus donos. O Valongo foi o maior mercado de escravos das Américas.

O tráfico de negras e negras se estabeleceu no local em 1779. Foi crescendo e, entre 1811, quando foi construído o cais, e 1831, quando o comércio de escravos passou a ser feito às escondidas entre África e Brasil, entraram 1 milhão de africanos pelo Valongo, equivalente a 25% dos quatro milhões que aportaram vivos no Brasil.

Escolas visitando e conhecendo a história do Cais do Valongo. FOTO: Joaquim Azevedo/ANF

O Cais do Valongo foi revelado em 2011, durante as obras para construção do Porto Maravilha, sendo reconhecido como Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) desde 2017.

Os escravos que não sobreviviam eram enterrados como indigentes, jogados em valas com mais de cem corpos, muitas vezes. Pode parecer irônico, mas em um momento de felicidade, Merced Guimarães dos Anjos, brasileira filha de espanhóis, encontrou um cemitério de escravizados em seu quintal, em 8 de janeiro de 1996, quando construía seu imóvel.

Foi assim que surgiu o Instituto de Pesquisas e Memórias dos Pretos Novos (IPN), no bairro da Gamboa, no mesmo ano. Hoje, é um dos principais espaços de luta e preservação da cultura negra em solo carioca.

Faixada do Instituto dos Pretos Novos, na Gamboa. FOTO: Joaquim Azevedo/ANF

Ninguém queria ir para a Gamboa

Poucas pessoas frequentavam a Zona Portuária do Rio de Janeiro. Para falar a verdade, somente os moradores gostavam do território. Os horrores da escravidão eram, e ainda são, muito latentes na cabeça do povo do centro do Rio de Janeiro. “Se você solicitasse um táxi e dissesse que iria para a Zona Portuária, o motorista mandava você descer, pois tinha medo de entrar no bairro“, lembra Merced Guimarães dos Anjos.

Um dos motivos para o preconceito são os morros que fazem parte do cenário, incluindo a Providência, primeira favela do Brasil, que abrigou ex-combatentes da Guerra de Canudos, não reconhecidos como heróis.

Havia ainda o medo causado por conta do terreno que abriga os corpos negros. Mas, ironicamente, o cemitério é um dos responsáveis por contar a história e mudar a visão da população com relação ao território.

“Hoje você pode chamar um Uber que eles te levam de boa, mas, como falei, nem sempre foi assim. E olha que a configuração territorial é basicamente a mesma“, analisa a Merced Guimarães dos Anjos, hoje com 66 anos, moradora do local desde os dois anos de idade.

Mercedes Guimarães no Instituto de Pesquisas e Memórias dos Pretos Novos. FOTO: Joaquim Azevedo/ANF

A realidade pelo olhar do morador

O preconceito esconde relatos maravilhosos sobre a Zona Portuária que, abraçada ao longo dos anos por negros e imigrantes, construiu parte das tradições do Rio de Janeiro.

Por conta do aparente isolamento, o bairro era muito familiar. Todos se conheciam. Era fácil cuidar de seus filhos e programar as inúmeras festas realizadas pelas competitivas sociedades e associações. Assim eram chamados os blocos carnavalescos. “Todos eram muito competitivos por aqui. Ninguém queria ter um bloco menos popular. Tudo era motivo para um grande movimento popular”, lembra Zuleika Araújo, sentada no portão de sua casa, no bairro da Saúde.

O embrião musical dos negros possibilitou que a primeira escola de samba fosse criada no local. Em 10 de dezembro de 1932 surge a Associação Recreativista Escola de Samba Vizinha Faladeira. Essas agremiações eram incentivadas pelo Zé Pereira, como eram conhecidos os homens que tocavam bumbos pelas ruas no período que antecede a quaresma, do calendário cristão católico.

Largo na Prainha na hora do almoço. Sensação de cidade pequena. FOTO: Joaquim Azevedo/ANF

A partir disso, as baterias foram surgindo. Depois nasceram as alegorias, com base nas procissões religiosas e o corso, prática de realizar um desfile em carros, além de jogar confetes e serpentinas em foliões na rua. “Temos eventos bacanas em nosso bairro. Só não tenho como comparar com os que ocorriam antigamente na Praça da Harmonia”, diz o comerciante José Fernandes, emocionado e agradecido por falar da história do bairro.

As lutas sindicais

A Zona Portuária abrigava muitos trabalhadores dos navios, por conta da proximidade com o Cais do Porto. Eles davam ritmo ao comércio municipal. Assim como costureiras de mão-cheia, o que viabilizava cooperativas e confecções no território.

Em local não tão distante, na Pedra do Sal, localizada no Morro da Conceição e, na Praça Mauá, a prostituição e o samba rolavam durante toda madrugada. Essa foi a imagem que resolveram alavancar por todo estado.

Nesse espaço rico em memórias culturais nasce, também, o primeiro sindicato. Na verdade, segundo história, associações que se tornaram sindicatos. O primeiro deles foi o dos Estivadores e Trabalhadores em Estiva de Minério, em 13 de setembro de 1903.

A revitalização da Zona Portuária

Com a ideia de reativar as atividades nesse território, a prefeitura do Rio de Janeiro deu uma repaginada no cenário, em 2009, por conta dos Jogos Olímpicos e Copa do Mundo, gerando novos empregos e tornando o Cais do Porto em algo mais vistoso.

O abismo social ficou evidente com as mudanças e muitos não curtiram as ideias impostas. Nem mesmo os animados eventos empolgam aqueles que vivem no bairro desde a infância.

Morador de rua dormindo na Praça da Harmonia: nem tudo mudou FOTO: Joaquim Azevedo/ANF

“Não dá para abraçar o que não é nosso. Não tem a nossa cara. Não lembra, nem de longe, a nossa Zona Portuária”, diz Merced dos Anjos, afirmando que a construção de identidade local foi feita pelos moradores da região e, não pelo poder público.

Sobre os destinos dos povos

Embarcar sem destino, como acontecia com escravizados africanos, contraditoriamente dá sentido ao que não fez sentido, o período escravagista. Entretanto, o legado cultural e social deixado pelo povo negro tinha rumo, atrelado à disposição da população em construir um local para viver e à empatia pelas causas de interesse comum. Isso torna a Zona Portuária do Rio de Janeiro um local único.

Não é à toa que o território atende pela alcunha de Pequena África, unindo 12 locais fundamentais em um circuito histórico de herança africana no Rio de Janeiro.

1 – Largo da Prainha: O Largo de São Francisco da Prainha é situado na Sacadura Cabral. Antes da construção do porto do Rio de Janeiro, existia uma pequena praia e, devido aos sucessivos aterramentos, a água desapareceu.

2 – Pedra do Sal: Chamava-se Pedra da Prainha e, por conta do carregamento de sal que recebia, teve seu nome alterado no decorrer dos anos. Fica localizada no Morro da Conceição.

3 – Morro da Conceição: É uma homenagem a Nossa Senhora da Conceição. Foi construída no alto do morro pela devota Maria Dantas.

4 – Jardim Suspenso do Valongo: Está postado na encosta do Morro da Conceição. Luís Rey projetou o espaço para manutenção da história afro-brasileira.

5 – Praça dos Estivadores: Abrigava armazéns de “negociantes de grosso trato”, que controlavam o tráfico negreiro antes de ser transferido para a Praça XV.

6 – Docas Dom Pedro II: Construído por trabalhadores não escravizados para ser o Ministério da Guerra, depois do incêndio em sua estrutura original. Está em frente ao Cais do Valongo.

7 – Cais do Valongo: Feito no ápice da escravidão, logo na chegada da família real. Acabou servindo como ancoradouro da Princesa Teresa Cristina, futura esposa de Dom Pedro II.

8 – Quartel da Guarda: Construção pensada para manter a segurança do mercado de escravos na região. O local fica em frente ao Cais do Valongo.

9 – Revolta da Vacina: A obrigatoriedade da vacina contra varíola gerou grande revolta e, comandados por Horácio José da Silva, o Prata Preta, a população lutou contra o exército diante das imposições governamentais.

10 – Lazareto: Galpões e sobrados onde os escravizados se recuperavam da viagem e aguardavam exibição para venda de seus corpos. As instalações eram insalubres, o que gerava muitas mortes.

11 – Centro Cultural José Bonifácio: Espaço de funcionamento da Escola José Bonifácio. Primeira Escola Pública da América Latina. O nome oficial era Escola Pública Primeira Freguesia de Santa Rita.

12 – Cemitério dos Pretos Novos: Principal local de prova diante da barbárie realizada no período escravagista. Terreno onde foram depositados dezenas de milhares de negros mortos.

Público conhecendo parte da história da Zona Portuária. FOTO: Joaquim Azevedo/ANF

Para os habitantes da Zona Portuária, há muitos motivos para comemorar. Em breve começam as festividades Juninas e a expectativa de que o estivador e capoeirista Horácio José da Silva, conhecido como Prata Preta seja mais uma vez homenageado.

A comemoração com barracas e comidas típicas faz a alegria de mais de cinco mil pessoas, agregando moradores e visitantes. Ainda hoje, a cultura e a história são feitas pela união de quem vem de fora, com os que vivem no local.

Mas ninguém é forçado a ir ou vir, como no passado escravocrata.

Joaquim Azevedo

@joacazevedo

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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