O Judiciário realmente erra?

Crédito: Arquivo / Ministério da Justiça e Segurança Pública

A lógica do erro ou do errar é entendida a partir do pensamento que a regra é o acerto. Ou que há uma conduta correta, a qual se busca e está sendo esperada. Uma receita culinária que dá errado é a que não conseguimos comer. A que ficou salgada demais, doce demais, inconsistente… Ou seja, não alcançou seu devido fim.

Entender que o Judiciário erra é pensar que ele tenta alcançar, mas não atende o seu dever ser. Entender que o Judiciário erra é pensar que ele parte de uma absoluta imparcialidade, e que seu objetivo é pura e simplesmente executar, no campo das relações e situações realmente existentes, o que está escrito nos textos normativos, ignorando toda e qualquer influência externa ao que é pautado pelas leis.

Isso é realmente possível?

Interessante que algum tempo atrás, eu estava justamente pensando sobre esse tema. Como a gente pode, em pleno 2019, trabalhar com a perspectiva de que o Judiciário realmente é o que ele deveria ser ou quando não é se traduz em exceção e não em regra?

Trabalhando a linha de Kelsen, em sua “Teoria pura do Direito”, temos a noção do Direito e sua distinção entre o SER e o DEVER SER. Ou seja, falando em termos menos abstratos, entre como as coisas são e como as coisas devem ser, que são distintos, porém cruciais, para entendermos e debatermos o Direito.

Kelsen, entre muitas coisas, por óbvio, trabalha isso ao recomendar um estudo do Direito como ele é, no sentido de um estudo descritivo, de um exame que esclareça o que o Direito vigente efetivamente é, o que ele nos entrega na sua execução.

Partindo disso, primeiro ponto é que não se pode analisar o Direito separado do contexto social sobre o qual ele incide. O Direito executado não tem condições de ser pura e simplesmente o Direito descrito no campo das leis. Por exemplo, ao propor uma nova excludente de ilicitude para atuação de agentes do Estado, o ministro Sérgio Moro argumenta que o que está se propondo existe em países como a Alemanha. Entretanto, ele não aborda que a polícia da Alemanha matou a tiros, no ano de 2017, total de 14 pessoas. A polícia do Rio matou em um único dia 13 pessoas na favela do Favellet no início desse ano. Até o mês de setembro o acumulado de mortes por agentes do Estado já passa de 1.4000.

Pensar uma lei sem levar em conta sua real aplicação é trabalhar apenas o Direito como ele deve/deveria ser e não como ele efetivamente é. Beira o ficcional. E pensar o Direito em 2019 é pensar fora do campo normativo. O direito teórico já foi pensado e maturado ao longo de muitos séculos. Precisamos pensar o direito prático, executado e executável.

Ponto inicial é pensar como RAÇA, CLASSE E GÊNERO, que se inter-relacionam como mecanismos de opressão e controle, incidem também na atuação do Direito. Afinal, as leis nesse país são feitas por homens, brancos e hétero, de uma elite financeira para serem executadas, contra e com todos os demais grupos que compõe o tecido social.

O Judiciário é feito para homens, brancos, classe média, média alta e quem foge a esse grupo precisa, na grande maioria das vezes, suplicar para que o Direito o alcance. Por isso, nós temos o sistema de justiça criminal como uma máquina de moer carne negra, temos uma população carcerária composta por 64% de pessoas pretas, enquanto a compõe 53% da população, assim como também nós temos mulheres sendo novamente violentadas pelo Estado quando buscam o registro de um crime de violência doméstica ou sexual.

Leandro Karnal fala que se o homem abortasse a igreja católica faria o aborto ao som de canto gregoriano. Mas, como as mulheres engravidam e os homens fazem as leis, o aborto ainda é proibido. Se os homens fossem vítimas de crimes sexuais, um trauma eterno na vida da vítima, teríamos varas especializadas para julgar tais casos, igual temos para crimes econômicos, que, por coincidência ou não, temos a população masculina branca, detentora do poderio econômico neste país como maior interessada.

Levando para o campo criminal nós vemos que o Direito são leis feitas por pessoas brancas, executadas por pessoas brancas contra pessoas pretas.

Isto posto, quando o Direito “erra” contra nós, quando Direito não atende o fim desejado por essa população – população que não está presente na sua efetiva execução – ou seja, quando o direito dos excluídos não é válido, respeitado ou executado, podemos, realmente dizer que é um erro?