O fator Lula

Cercado de petistas, Lula deixa a carceragem de punho erguido. Imagem: Ricardo Stuckert

Como previsto, o Supremo restabeleceu o princípio constitucional do trânsito em julgado para o cumprimento da sentença e com isso abriu o cárcere de Curitiba para Lula Livre, finalmente. Um ano e sete meses depois de condenado em segunda instância e preso, o ex-presidente sai como queria: sem tornozeleira e sem arrego.

Passada a ressaca da libertação, como será o amanhã? Lula vai percorrer o país, como já feito em outras oportunidades, com ânimo redobrado. Disse que está com a “idade biológica de 74 anos, a disposição de 30 e o tesão de 20”, mas todo cuidado é pouco, avisa o jornalista Pepe Escobar, experimentado em armadilhas e tramoias da política internacional. Lula é alvo preferencial de toda sorte de milícia e do ódio inoculado na sociedade pela gangue instalada em Brasília e em muitos estados da federação.

Na verdade, parece que agora temos dois presidentes, um de direito e outro de fato, ou um de direito e de fato e outro “in pectore”, no peito, intimamente, secretamente. No Brasil tão dividido pelo ódio, Lula se proclama amor, mostra determinação e coragem para vencer a mediocridade reinante há tempos. Sim, porque desde antes da eleição, desde Michel Temer, foi-se formando o caldo de intolerância e ódio em que estamos hoje.

Vale lembrar que a prisão em segunda instância foi criada especialmente para Lula sair da eleição do ano passado, pois a Constituição determina a presunção de inocência até a última instância. Como disse alguém, o Supremo disse na quinta-feira da semana passada que a Constituição é constitucional. Os protestos contra a votação são o preço que o tribunal paga pela omissão continuada, reiterada, diante dos desmandos de Sérgio Moro na condução da Lava Jato.

Mas, a libertação de Lula é um acontecimento internacional, saudado por líderes e pela imprensa com indisfarçável júbilo. E também pelo maestro da ofensiva obscurantista nos Estados Unidos e no mundo, Steve Bannon, responsável pela eleição de Donald Trump, que teme os riscos de reviravolta no quadro político não apenas brasileiro, mas em todos os países onde a direita radical tem avançado. Lula é visto como o maior líder da luta democrática mundial.

No plano interno, há uma movimentação inédita no Congresso para aprovar Proposta de Emenda Constitucional impondo a prisão imediata após a condenação em segundo grau, e com isto mandar Lula novamente para a cadeia. A manobra pode dar certo, mas tem muita água pra passar debaixo da ponte.

Primeiro, aprova-se a PEC na Comissão de Constituição e Justiça, onde qualquer matéria precisa ser examinada para determinar a admissibilidade e a constitucionalidade. Toda proposta precisa passar por este ritual. Isto está previsto para esta semana, promete a senadora Simone Tebet, presidente da comissão no Senado, onde o governo tem menos dificuldade do que na Câmara.

A partir da aprovação, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, nomeia uma Comissão Especial exclusiva para examinar a PEC. Segue-se o trâmite definido no regimento interno, com número determinado de sessões para discussões, apresentação e apreciação de emendas e votações. Vencido este processo a matéria segue ao plenário onde precisa ser aprovada por quorum qualificado de 2/3, ou 49 dos 81 senadores.

Terminou? Não, politizado leitor e interessada leitora: a PEC tem de ser novamente aprovada, em outra sessão deliberativa, pela mesma quantidade mínima de votos. Se passar, vai cumprir o mesmo ritual na Câmara e só será promulgada se aprovada por 308 dos 513 deputados, em dois turnos.

Também na Câmara deputados da base prometem muita correria para aprovar propostas que tramitam por lá com o mesmo teor, como o “pacote anticrime” de Sérgio Moro. É oportuno, sobretudo considerando as manifestações seguintes à decisão do STF.

O tempo, no entanto, é aliado da oposição, pelo menos nesta semana: quarta e quinta-feiras serão ponto facultativo nas repartições federais em Brasília, que incluem o Congresso, por causa da reunião dos chefes do BRICs. Mesmo quando desdenhado e menosprezado pelo Itamaraty, o bloco insiste em contrariar o governo brasileiro.

A dificuldade maior da volta à prisão em segunda instância é a aprovação na Câmara, porque muitos deputados poderão sofrer as consequências na própria pele e isso pesa mais na votação dos que estão enrolados com a justiça do que fidelidade a partido, orientação de líder ou vontade do eleitor, como é costume acontecer.

Como bem lembrou o presidente do Supremo, Dias Tóffoli, em seu voto na última quinta-feira, apenas três pedidos de abertura de processo contra deputados foram aprovados pela Câmara, num total aproximado de dez encaminhados pelo STF. “A impunidade vem do parlamento”, disse, sugerindo que mudem a Constituição se querem a prisão em segunda instância.

Aí há outra discussão, porque a presunção de inocência até o trânsito em julgado está no artigo 5º da Constituição, no qual a defesa de Lula baseou o pedido de soltura por se tratar de cláusula pétrea, ou seja, impossível de ser alterada por uma proposta de emenda constitucional. Embora Tóffoli tenha sugerido esta possibilidade, o ministro Lewandowski já levantou a questão contrária. É mais uma discussão que vai ao Supremo, caso a PEC seja aprovada.

O governo e sua base desarranjada no parlamento correm para trancar Lula de novo, mas temem a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar, como se dizia. Ainda mais os deputados estreantes em Brasília, que são boa parte da turma do PSL, segunda maior bancada, atrás do PT.

Deputado de primeiro mandato costuma não ter ideia do funcionamento do legislativo. Na sua cabeça, ser deputado é a oportunidade de se dar bem. Entretanto, é difícil permanecer no cargo. Esta é uma das razões da alta renovação a cada quatro anos. Na última eleição foram eleitos 243 estreantes, uma renovação de 47 por cento. Quantos eleitos na onda bolsonarista de 2018 conseguirão se reeleger nas próximas eleições?

Além do mais, calcula-se que entre 30 e 50 deputados comandam os trabalhos e os destinos na Câmara. São líderes, presidentes de partidos, empresários, donos de rádios e televisões, mantêm currais eleitorais e acima de tudo estão em Brasília há várias legislaturas. São poucos os representantes do povo.

Governistas no parlamento e nas redes espalham terror e medo com declarações apavorantes anunciando a soltura de centenas de milhares de condenados a partir de agora, o que é tão provável quanto a Terra plana ou a quadratura do círculo.

O cenário apontado por Tóffoli na semana passada mostra o Brasil com uma população carcerária superior a 845 mil pessoas, das quais quase 385 mil sequer foram julgadas ainda, e 294 mil cumprem condenação em primeiro grau. Não serão afetadas pela decisão de quinta-feira, ou porque cometeram crimes graves, ou foram condenados pelo júri, ou não apelaram nem apelarão, ou porque em grande parte sequer cumprem sentença judicial. Fora a multidão sem assistência jurídica por absoluta falta de recursos.

O que volta à evidência agora é a sede de vingança contra o ex-presidente Lula, um sentimento difuso alimentado pelas fake news nas redes sociais e pelas imagens de protesto contra o Supremo repetidas nas nossas telinhas de televisão, em especial a Globo. Critica-se o presidente do Supremo porque soltou Lula, mas ninguém reclama que ele também suspendeu as investigações sobre Flávio Bolsonaro.