O evangelho da favela

Favela de Manguinhos - Foto: Edilano Cavalcante

Enquanto Flordelis e Pr. Everaldo tomavam cena sombria nesses últimos dias despertando indignação e escárnio, meu espírito se voltou para outra banda daquilo que chamamos de “evangélicos”, uma multidão que me inspira o Caminho nas favelas e na vida, vidas pontuais entregues ao bem, ao belo e ao justo. Recordei de muita gente mesmo, desde minha vovó Rosa, Pr. Ismael R. Teixeira, Dona Maria Inácia, primo Ronaldo, Rev. Beto, maninha Keds, Pedro do Borel, Pr. Caio e mais centenas, gente boa de Deus.

Gente bela que fez da fé um estilo de vida em praticar o bem e defender o justo. Não como Flordelis, Everaldo e tantos outros pulhas. Pincei simbolicamente uns poucos que foram ou ainda são bons pastores. E da minha Igreja Presbiteriana Unida. Hoje escrevo não porque sou cuidador de gente… Mas porque Flordelis e Everaldo são não sendo o que deveriam ou poderiam terem sido e feito. Pastorear, cuidar, orientar, estar junto no sorriso e no choro, na vida, na morte e na nova vida. Apontar as histórias para aquela justiça graciosa, serem presença da eternidade que redime o temporal e nos põe numa verdadeira instalação nessa terra de Deus.

Primeiro personagem dessas lembranças foi o Rev. João Dias de Araújo, homem da nossa gente, formado em Princeton. Pastor visceral que viveu junto do povo com amor, registrou os absurdos e traições dentro da Igreja Presbiteriana antes e durante o regime militar, num livro chamado “Inquisição sem Fogueiras”. Foi ele quem compôs esse hino num dia ruim de 1967, a letra diz por si o sentido de ser cristão e também protestante:

Que estou fazendo se sou cristão?
Se Cristo deu-me o seu perdão?
Há muitos pobres sem lar, sem pão,
há muitas vidas sem salvação.
Meu Cristo veio p’ra nos remir:
o homem todo, sem dividir,
não só a alma do mal salvar,
também o corpo ressuscitar.

Há muita fome no meu país,
há tanta gente que é infeliz,
há criancinhas que vão morrer,
há tantos velhos a padecer.
Milhões não sabem como escrever,
milhões de olhos não sabem ler.
Nas trevas vivem sem perceber
que são escravos de outro ser.

Aos poderosos eu vou pregar,
aos homens ricos vou proclamar
que a injustiça é contra Deus
e a vil miséria insulta os céus.
Meu Cristo veio p’ra nos remir:
o homem todo, sem dividir,
não só a alma do mal salvar,
também o corpo ressuscitar.

Lembrei também do Rev. Jaime Wright, pastor no sertão nordestino. Essa jornada pastoral junto do povo não é falada ou tampouco muito conhecida, mas o Pr. Jaime tornou-se notório por seu trabalho pelos direitos humanos nas décadas de 70 e 80. Sua pesquisa com o então arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, “Brasil: Nunca Mais”, levantando centenas de processos para expor as fraturas dum governo autoritário e truculento. Revisão histórica daquela época, denúncia eloquente e precisa de torturas, assassinatos e covardias. Nesse movimento, milhares de vítimas ganharam voz na voz de um pastor, seu púlpito estava ao lado da indignação e da justiça. Sua filha, Presbítera Anita Wright Torres é hoje moderadora da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, mulher tanto forte quanto gentil, numa denominação que muitos encontram vez e voz.

Lembrei ainda do meu caríssimo amigo Rev. Zwinglio Mota Dias, que perdeu seu irmão naqueles porões da repressão. Ele mesmo, sujeito tanto culto quanto humilde, também se encontrou atrás de grades por pregar o Evangelho. E nas cadeias, sob o exemplo apostólico, anunciou a esperança e celebrou a vida na eucaristia com outros presos. “Este é meu corpo, quebrado por amor de vocês”. Foi ele quem organizou a Igreja Presbiteriana Unida da Vila Proletária da Penha, no coração do Conjunto da Vila Cruzeiro há quase 50 anos atrás. Igreja que surgiu e serviu como alavanca das primeiras lutas, direitos e conquistas da comunidade, igreja que tenho honra e alegria de pastorear hoje.

Por fim e desde o início lembrei de Rubem Alves. Também pastor presbiteriano, saiu fugido do Brasil denunciado como subversivo por colegas santarrões e canalhas. Ainda bem, posto que em Princeton onde doutourou-se, escreveu sua tese “Da Esperança”. Em diálogo crítico com a tradição teológica européia, foi o primeiro marco na reformulação do refletir cristão latino-americano. E depois seguiu seus caminhos entre educação, psicologia e poesia. Terminou seus dias escrevendo sonhos, contos e esperanças para crianças. Como ele mesmo disse parafraseando e ressignificando um antigo dogma, “fora da beleza não há salvação”.

Nossas igrejas são pequenas, em boa parte localizadas nas favelas e vilarejos, aqui no Rio em lugares como Parque Acari, Manguinhos e Vila Cruzeiro. Não temos dinheiro suficiente para nossos sonhos e muito menos tempo a perder com teologias da prosperidade ou conchavos políticos. Queremos existir como o Cristo da Bíblia, parido na sujeira porque não tinha dinheiro e não havia outro lugar para ele. Ele mesmo quem, trazendo e se fazendo mensagem de transformação radical nas esquinas empoeiradas da periferia palestina, rasgou o mundo entre antes e depois. Somos evangélicos desse jeito, graças a graça de Deus.