O charuto e a cerveja

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Uma hora da madrugada e eu acabo de abrir uma cerveja e acender um charuto sentado diante do teclado do computador. Tomei um gole, soltei uma baforada e lancei os dados sobre o começo da madrugada. E nada poderá mudar isso, aconteça ou não algo. Bebo o segundo gole e lanço o olhar ao cinzeiro de vidro espesso e apenas um lugar para descansar o charuto. Tem uma imagem colorida do Buckinham Palace estampada no fundo e a palavra London desenhada em letras vermelhas e douradas, onde a cinza se deposita com a falsa parcimônia das cinzas dos charutos. Demoram, mas caem pesadas como o céu londrino nos filmes antigos de Sherlock Holmes.

Estou só no apartamento e nada que eu faça ou deixe de fazer mudará esta realidade, pelo menos enquanto houver cerveja na garrafa e charuto para fumar. O cinzeiro foi comprado por minha mulher em Brasília e trazido para o Rio de Janeiro de presente, um modo singelo e amoroso de dizer que se lembrou de mim nas retas e tesourinhas da cidade. Ela viu o cinzeiro, comprou pensando em mim, contou-me ao telefone, e se esqueceu de guardá-lo na bagagem. Voltou para casa sem ele, o que ampliou o efeito surpresa de forma inesperada.

Durante um bom tempo que não sei precisar agora fumei meus charutos descansados sobre pires ou outro objeto improvisado até que ela viajasse outra vez para resgatá-lo do lugar onde o havia esquecido. Minha mulher é assim e eu a amo cada dia mais assim como ela é, e não há coisa alguma que possa mudar isso. A cada baforada imaginei o cinzeiro na fumaça, desenhei-o na mente, dei-lhe formas diferentes e me diverti quando o recebi e constatei a semelhança que guardava com todos os cinzeiros de charutos, de louça, metal ou vidro.

Os noventa e seis apartamentos do prédio dormem em silêncio, à exceção do cachorro que late para a madrugada; não um lamento de filhote, mas a reclamação de cão adulto impedido pela chuva de exercitar seu passeio noturno. Ou, quem sabe, sente falta da sua companheira, e nada poderá alterar esta realidade nua, crua e molhada como as calçadas de Copacabana nesta madrugada. Impossível dizer de onde partem os latidos, como igualmente apontar de onde vem o cheiro do charuto a se misturar com as gotas de chuva além da minha janela, a única do apartamento. Impossível também adivinhar quantos habitantes do edifício, da rua e do bairro estão tão sozinhos quanto eu na madrugada chuvosa; este é um bairro de lobos solitários, um grande asilo de velhos escudados em suas memórias, cobertos de cicatrizes da vida.

Neste ano apenas morreram três moradores, uma senhora do quarto andar, outra do oitavo e um senhor de oitenta anos que morava sozinho no décimo primeiro, autêntico lobo solitário que se foi sem deixar nada além de breves comentários na portaria. Se a cada morte fosse fincada uma cruz junto ao meio-fio, não seria fácil andar por estas ruas, além do que o bairro seria mais lúgubre, para dizer o mínimo. Não é o que acontece, felizmente, e nada vai mudar também esta realidade.

Quase duas horas agora, escrevo depressa no teclado mas os pensamentos demoram a aflorar; ou antes, vêm ao sabor dos goles de cerveja e fugidios como a fumaça das baforadas, por isto, talvez, eu me perca em devaneios. Ou então brinco com minha mente para escapar ao que a ocupa com obsessão nos dias que correm, e como correm os dias nestes tempos de tribulações! A preocupação de tantos com o futuro próximo, com a escolha fatídica que se avizinha no calendário, o horizonte assombroso que nos apavora. E esta é outra realidade também, mas com uma grande diferença essencial e importantíssima sobre as anteriores: ela pode ser mudada! Depende apenas e tão-somente de cada um de nós. Haddad 13!