O assassinato do ato de comer como prazer

foto: banco de imagens Pixabay

O ato de comer parece, à primeira vista, ser algo simplório da vida cotidiana. Ele emerge aos olhos do ser humano comum como uma função necessária da ordem biológica.
Essa imagem esconde a complexidade que envolve essa prática no interior das sociedades, pois, se os seres humanos se restringem a se alimentar somente para satisfazer as necessidades vitais do corpo, alimentar-se-iam de qualquer produto comestível.

Assim, a casca de banana, a casca de melancia, os escorpiões, o ensopado de cachorro, o espetinho de rato ou de gato e o macarrão com molho de minhoca seriam universalmente aceitos para saciar a fome. Todavia, o ato de comer corresponde a um contexto cultural e social, ele é fruto do que chamam de hábitos alimentares: o conjunto de valores, práticas e princípios que regem a seleção e o preparo dos alimentos em uma determinada sociedade. (Deve-se lembrar que até a revolução industrial, séc. XVIII, e a revolução verde, XIX, a produção de alimentos era mais dependente da disponibilidade dos recursos das localidades).

Os hábitos alimentares, na realidade, estão apoiados nas formas de interpretação e avaliação do mundo produzidas pela vida social (hábitos). Eles são orientados pelo ventre simbólico. Pode-se afirmar que comemos signos, valores, ideias. Ao comer estamos colocando em jogo a vontade de reconhecimento social, a busca por prestígio social, o desejo de mediação com o sagrado, a sensação de saciedade ou a eficácia medicinal.

O ato de comer nos seus mais simplórios gestos e práticas expressam as relações sociais que caracterizam o mundo onde estamos inseridos; nesse sentido, ele é uma atividade constitutiva da realidade social, mais do que um mero espelho dela. Nessas últimas décadas, uma das características mais importantes do ato de comer, que é sua capacidade associativa e estimuladora de coletivização, vem sendo atenuada e desestruturada pelos novos hábitos alimentares legitimados pela sociedade contemporânea por meio da indústria cultural e do processo de globalização, que valorizam as comidas rápidas e as comidas prontas.

Além disso, as mudanças técnicas no preparo e consumo dos alimentos respondem às novas formas de organizar o trabalho e a vida social, em que o tempo do trabalho (e o capital) penetram em todas as dimensões da vida social. Os fast foods, os microondas, os freezers, as comidas congeladas e prontas, deram condições para a emergência do consumo mais individualizado dos alimentos e até mesmo o abandono das receitas de família. As receitas da bisavó, os jantares e almoços em família cada vez mais vão se esvaindo do cotidiano, principalmente nas grandes cidades.

Com a consolidação do ideal da magreza como síntese da relação comida e saúde, e com o avanço das práticas médicas sobre a organização dos hábitos alimentares, o ato de comer está sendo transformado numa atividade associada à ideia de perigo, o que corrói a visão da alimentação como um momento festivo da vida social. Uma espécie de controle total da vida se processa a partir do controle social, técnico e científico sobre os hábitos alimentares contemporâneos através do discurso sobre o corpo.

Hoje, comer passou a ser uma questão de angústia, pois envolve a incerteza de não se ter controle sobre o que se come e a frustração de se deixar seduzir pelo prazer da boa mesa. O discurso nutricional legitimador do modelo cultural da beleza magra transformou a obesidade em doença e em preconceito, reconfigurando o centro dos hábitos alimentares e das grandes empresas alimentícias, que ganham milhões com as linhas de alimentos diets e ligths. Veja a intervenção avassaladora nas periferias de Nova York sobre a alimentação dos pobres, por meio da estimulação de compra dos produtos ligths subsidiados e da retirada, na merenda escolar, dos produtos ricos em gordura.

Na realidade, cada vez mais a clivagem social que se expressa nos hábitos alimentares torna-se complexa, saindo do dualismo fome e abundância para o antagonismo magreza, como expressão social dos padrões de riqueza; e obesidade/gordura, como sinal de pobreza e desregramento. Todavia, deve-se considerar esse fato pensando nas condições sociais produzidas pelo desenvolvimento tecnológico, o qual poupa esforço físico, tornando os indivíduos propensos a acumular gordura, mas que também os impede de queimar essas gorduras, não disponibilizando dinheiro e tempo para isso.
(Coisas de difícil acesso para os muitos desempregados e pobres que habitam o mundo!)

Enfim, o ato de comer chama a refletir profundamente sobre os destinos da sociedade contemporânea, porque, enquanto muitos morrem pela falta de alimentos, outros se deprimem pelo seu excesso, buscando mostrar que não se pode demonizar o prazer da boa comida e perder de vista que o ato de comer não deve ser resumido à quantidade de proteínas e carboidratos.

Devemos pensar num leitão à pururuca, no seu sabor e fragrância, na sua textura e crocância, e não no colesterol que se irá obter ou sua composição química. Resta perguntar-se: Será que os seres humanos estão deixando de ser gourmets ou degustadores para se tornarem bioquímicos dos alimentos cotidianos, vendo o mundo como fórmula química? As novas práticas sobre alimentação estão eliminando de nossas vidas os prazeres da boa mesa. Falar sobre e se deliciar com uma boa comida. As duas práticas estão se tornando crimes.

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