O abuso é um problema de todos nós

Fonte da foto: https://soumamae.com.br/tudo-precisa-saber-sobre-abuso-infantil/

Uma das coisas boas de escrever é poder compartilhar o que fica sobrando, ou nos assombrando. Este texto não é um texto fácil de ler. Pode parar por aqui, se quiser.

Se a gente for seguir as ideias das propagandas a infância é a terra do paraíso. Tem até a história famosa do Peter Pan que não quer crescer. É uma história bem legal e dá nome para uma síndrome: a Síndrome de Peter Pan é uma defesa que pessoas adultas usam para não assumir os compromissos. E nem sei se dá pra dizer que estão erradas. Mas infância não é brincadeira. Passar por ela sem sofrer traumas é muito difícil.

Tem muita gente que vira notícia quando admite que sofreu abuso. A manchete é mais ou menos assim: “atriz global (ou atleta famoso) relata sua história traumática e revela ter sido vítima de abuso na infância.” Mais uma vez as pessoas precisam entrar em contato com essa realidade e é muito bom se uma pessoa pública assume isso e ajuda a conscientizar as pessoas e as autoridades responsáveis. Muitas medidas preventivas podem ser tomadas e muitas pessoas podem se sentir fortalecidas para denunciar casos que viveram ou testemunharam. Uma das piores coisas é o segredo que reina nas famílias sobre o abuso.

Enquanto escrevo este texto vi uma manchete na qual este trecho me despertou:

“O papa Francisco tomou medidas para enfrentar um crescente escândalo de abuso sexual no Chile, mas não abordou um problema mais próximo de sua casa: a própria Cidade do Vaticano não tem diretrizes para proteger crianças de padres pedófilos.”

https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2018/07/03/cidade-do-vaticano-nao-tem-diretriz-para-combater-abuso-sexual-de-padres-em-seu-territorio.htm

Então, vamos ajeitar logo uma coisa. Não dá para falar de abuso, assim, no singular. O que temos é uma quantidade incalculável de histórias de abusos, no plural, escandalosamente no plural. Abusos de todos os tipos. E principalmente contra as pessoas mais frágeis: crianças, mulheres e pessoas pobres e não brancas.

Eu amo papelaria e livraria. Quer me agradar? Me dê livros, lápis e canetinhas, cadernos e estas coisas maravilhosas que encontramos dentro de uma papelaria. Junte isso a um café e estou no paraíso. Para que falar disso? Talvez para me distrair, um pouco. Antes dizer uma coisa boba para depois dizer a coisa séria, pesada: como frequentadora assídua de papelarias, nunca vi régua que mede sofrimento. Jeito bobo mas sincero de dizer: mesmo sabendo que em país racista quem sofre mais são as pessoas negras, que em sociedades machistas as mulheres sofrem mais, mesmo tendo certeza de que há pessoas muito mais vulneráveis e que precisam de proteção com urgência, eu também quero dizer que sofrimento não se mede. É contraditório, eu sei. Por isso declaro antes: há pessoas que sofrem mesmo mais do que outras e ao mesmo tempo estão mais desprotegidas.

E dito isso, retomo meu pensamento incerto: todos nós sofremos abusos. Como mamíferos somos dos mais vulneráveis enquanto filhotes. Somos mais lentos para poder viver  longe dos pais. Na relação entre adultos e crianças, em geral, as crianças saem perdendo. Escrevi um texto sobre isso, chamado “Dupla face”. Não gosto muito de reler. Mas vamos lá:

 “Adultos fumam cigarros quentes. Crianças têm a pele finíssima. Adultos velozes gostam de corridas. Crianças recolhem papel para fazer barquinhos. Adultos usam cintos e botas. Crianças adoram tomar banho de chuva. Adultos compram corpos infláveis. Crianças dormem com ursinhos de pelúcia. Adultos têm mãos calejadas. Crianças passam as mãos vagarosas sobre o veludo. Adultos refinam suas mentiras. Crianças brincam de esconder. Adultos inventam quartos escuros. Crianças colecionam chaves sonoras. Adultos colocam sua sujeira embaixo do tapete. Crianças viajam em tapetes voadores.”

Quero chegar neste ponto que dói bastante mas nos aproxima: as dores que sofremos quando somos pequenos. Quando dependemos dos adultos. Quando os abusadores estão, muitas vezes, dentro das nossas casas. Claro que falar do abuso sexual é o mais urgente. E vamos continuar denunciando. Mas preciso chegar mais perto de você e falar baixinho: eu entendo quando você se lembra dos maus tratos pelas coisas que falavam pra você. Porque eu também ouvi, muitas vezes, coisas muito ruins de ouvir. Eu também escutei palavras de ameaças, desprezo, comparação, rancor, ódio, desrespeito, chacota. Palavras que me feriam, que me faziam acreditar que eu era má ou que eu merecia pouco. No filme “Sem amor” um menino ouve, atrás da porta, uma ameaça dos pais que é inspirada na maldade dos pais de João e Maria, aquele conto de fadas muito antiga e ainda tão atual que fala de pais que abandonam seus filhos.

Fonte: Reprodução internet
Fonte: Reprodução internet

E para que escrever sobre isso? Na verdade, há coisas que são assim: se falar é ruim,  não falar é muito pior.  E o que eu queria compartilhar contigo é mais ou menos isso: todos fomos, de alguma forma, abusados na infância. Então, quando alguém aparece nas mídias e denuncia uma vivência de abuso, todos podemos dizer: eu entendo. Estive na sua pele. De um jeito ou de outro.

E daí? Primeiro passo para não seguirmos adiante é não sendo os novos abusadores. Há momentos em que ver um pai dando um tapa no filho na rua me deixa indignada. Mas dependendo da situação eu fico indignada quando ouço certas coisas que um pai diz para um filho. Fui professora de crianças por bastante tempo. Às vezes tinha medo de dizer que um aluno estava com algum comportamento inadequado em sala de aula porque a reação dos pais era tão violenta que piorava a situação.

Abuso não é um tema interessante. É necessário. Abuso psicológico parece mais sutil, mais disfarçado, parece que dói menos. Mas machuca, humilha, acaba com tua força. Então, presta atenção nas pessoas que hoje tentam ser abusivas contigo. Agora que você cresceu. Que tamanho pode não impedir tua defesa. Presta atenção. E se der, mantenha uma distância. Posso ser sincera? Eu, já quase uma velhinha, ainda tenho pessoas nas minha relações que abusam um pouco. Ou porque irritam, ou porque não devolvem os livros, ou porque não pagam o que devem ou simplesmente porque não me tratam como eu mereço. Mas uma coisa eu aprendi: só tem uma pessoa que pode ser abusiva comigo hoje e esta pessoa sou eu. As outras, eu posso mandar embora. Ou dizer para elas quais são os meus limites. Ou, se for difícil, manter uma distância segura. Mas não acho que seja simples. Porque o abuso muitas vezes vem embalado em forma de carinho, de amor, de paixão até.  Crime passional está nas manchetes quase todos os dias. Crime que começa como filme romântico, quase sempre.

Nós fomos abusados, de alguma forma. E de alguma forma, agora que crescemos, podemos evitar que a corrente do abuso continue. Para que haja crianças mais felizes. Estas crianças que fomos. Estas crianças que ainda somos, muitas vezes, ao lembrarmos de nossas dores do passado. Eu acho até que esta é nossa obrigação. Falar disso, tirar a sujeira do tapete. Limpar as feridas. De preferência, juntos. De preferência, com ajuda de profissionais. Para que o nosso presente seja mais leve. Para que o hoje seja melhor, para todos.