“Na periferia temos mais amor que ódio, mas isso não é difundido pela mídia sensacionalista”

Cannibal- Crédito: Suellen Barbosa/ANF

“A mídia sensacionalista está dentro da periferia, querendo mais crime, sangue e ódio. Só que na periferia temos mais amor que ódio, só que não é difundido. A nossa cultura, o que estamos criando, não aparece na televisão”, comenta Cannibal, 52 anos, integrante da banda de punk rock Devotos, que há mais de 3 décadas (re) existe. 

“Com a Devotos, sempre vamos fazer o que a gente acredita, gosta e o que achamos certo. Sempre vamos seguir isso.” Com esse lema, Cannibal, atribuí a longevidade da banda que nasceu na periferia de Recife, no bairro Alto José do Pinho, em 1988.

Pai de Laís e Maria Vitória e marido de Keila, Cannibal, não olha para trás com nostalgia. Em tempos de modernidade líquida, segundo o filósofo Zygmunt Bauman, a fluidez das relações e as forças criativas do capitalismo, contribuem como um norte para o consumismo desenfreado.

O mercado musical não foge a essa ideia, e basta acessar o seu streaming de música favorito para perceber isso. Semanalmente somos influenciados por novas canções, novos ritmos e novos artistas. Ou um top 10 da semana. O que se ouve hoje, talvez desapareça da timeline semana que vem.

Cannibal está atento ao que acontece. “A diferença da época do Movimento Mangue para hoje, é que o Movimento não era engajado só na  música, mas com questões sociais também. A estética estava em todo lugar: nas artes plásticas, na fotografia, na dança, no cinema, na moda. A identificação com esse universo do Manguebeat, deu a importância que tem até os dias de hoje,” pontuou o vocalista.

Cannibal- Crédito: Suellen Barbosa/ANF

Trajetória

Nos 33 anos de (re) existência da Devotos, Cannibal orgulha-se de que a banda, criada com Neilton e Celo, siga produzindo a própria carreira, mantendo-se fiéis e verdadeiros com a própria arte. “Somos de antes do começo do Manguebeat e quando Chico (Science) veio aqui em casa e convidou a gente para participar de um projeto nacional, ficamos felizes, mas também surpresos. Eu pensava naquela época que o movimento não se encaixaria  com nosso som de punk rock”, relembra.

Cannibal acredita na força do fazer. “Quando você faz uma coisa boa de verdade, ela vai dar certo. Da mesma maneira, se você fizer algo ruim de verdade, isso vai se propagar. Tudo vai da sua intenção”, disse.

De fato, para três jovens negros da periferia da região norte de uma capital como Recife, ter a chance de poder escolher sobre o que fazer com a própria vida, pode definir que caminho a vida vai tomar. As dificuldades de raça e classe podem destruir qualquer sonho mais audacioso. “Quando a gente criou a Devotos, foi para mudar um quadro social através da música. O que aconteceria em seguida, a gente não tinha ideia, mas tínhamos a consciência de quem éramos: pretos, pobres e do subúrbio”, coloca em perspectiva Cannibal.

Sabendo que musicalmente, dentro das periferias no final dos anos 80, o que prevalecia era o pagode e o brega, Cannibal e os companheiros, criaram uma banda de punk rock hardcore. “Não só no Alto José do Pinho, mas arrisco dizer que nem no nordeste havia algo assim naquela época. Punk um som que chegava aqui através de bandas do sul e sudeste do Brasil, importado da Europa e Estados Unidos. Mas a gente decidiu mudar nosso quadro social através desse som que a gente gostou”, afirmou Cannibal. 

Banda Devotos- Crédito: Arquivo pessoal

Depois da visita e convite de Chico Science, os integrantes da Devotos (naquela época ainda com o “do ódio” no nome), viram diversas portas se abrirem. “Particularmente, para mim, foi das melhores coisas que aconteceu musicalmente aqui em Pernambuco. Fez a gente olhar para dentro e valorizar nossa cultura, nossas raízes e o Brasil olhou para si”, concluiu. 

“Após a morte de Chico Science (Chico morreu em 02 de fevereiro de 1997), a gente já fazia trabalhos sociais aqui no Alto (José do Pinho), fizemos uma reunião com o pessoal da Nação Zumbi e criamos um projeto social chamado Acorda Povo. A ideia era ir nas comunidades, ministrar oficinas de fotografia, grafite, dança, tudo a partir da estética do Movimento Mangue”, explicou. 

Pernambucana. O projeto, segundo Cannibal, ocupou muitas comunidades na cidade, levando, além das oficinas, shows gratuitos. “Fomos a várias periferias. O carro-chefe de shows era sempre Devotos e Nação Zumbi, mais um artista convidado. Fizemos shows com Mundo Livre S/a, Matalanamão, Otto, Eddie, Faces do Subúrbio, dentre outras. O Acorda Povo deu tão certo que o Governo percebeu que seria possível descentralizar o carnaval do centro de Recife e levar para as periferias. Poucas pessoas sabem ou falam sobre isso, mas foi com essa iniciativa da gente que o carnaval pode ir para as periferias e sair do centro da cidade”, finalizou.

A Devotos é uma banda que se autoproduz e gerencia a carreira sem a interferência de um produtor fixo, por exemplo. Para o trio, faz mais sentido que seja assim e até justificam os motivos. “A gente que é da periferia, acredito que já nascemos sabendo do it yourself. Ter uma banda e não ter um instrumento, era uma grande dificuldade para gente. Tudo era na base da força de vontade e ajuda de familiares que ajudaram a gente no início. Não sabíamos tocar antes da Devotos existir. Aprendemos juntos ali naquele quarto”, disse.

Banda Devotos- Crédito: Arquivo pessoal

As artes visuais dos discos, por exemplo, são de autoria de Neilton que é, também, artista plástico. “Antes de ter banda a gente se conhecia, nos conhecemos desde a infância e isso ajuda muito a alinhar as vontades e a identidade que queremos”, concluiu.

Foi a partir do convite de Paulo André (idealizador do Festival Abril pro Rock), que a banda teve o reconhecimento no bairro em que moravam. “Paulo chamou a gente para um outro festival dele, também no Circo Maluco Beleza, para tocarmos só umas três músicas. A galera gostou e tocamos mais duas. Demos a sorte de sermos a primeira banda e o NE TV da TV Globo estava lá cobrindo o evento. Não estávamos nem no cartaz. De repente, a comunidade liga a televisão e assiste a banda dos caras da vizinhança que passavam o dia todo na calçada, tomando vinho e fazendo um som. O tratamento já foi outro”, relembra.

Para Cannibal é simples, mas não fácil compreender a reação da comunidade frente aquela realidade que não estavam acostumados no dia a dia. “A gente só se via e se reconhecia nas páginas policiais. De repente está uma banda punk com um negro frontman, tocando e as pessoas assim “caralho, os caras estão na tv”. Isso é uma coisa que faz uma sociedade mudar, finalizou Cannibal.

Cannibal- Crédito: Suellen Barbosa/ANF

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