Morte à imprensa! Vivam as “fake news”!

Telejornal de maior audiência é alvo preferencial de Bolsonaro - Foto da internet

Todos sabemos que Jair Bolsonaro é um destemperado de xingar repórter, um exagerado de propor a extinção da imprensa pra ele governar sem ter de responsabilizar jornalistas inescrupulosos por denegrir seu governo (atenção para a ironia). A ideia esdrúxula me evocou a piada do marido que flagra a mulher com o amante no sofá de casa e contorna o constrangimento tirando o sofá da sala. Não passa pela cabeça de Jair nem de qualquer de seus acólitos e seguidores que os jornais, as rádios e as televisões sempre foram o que são e acabar com eles não os fará gozar a paz e tranquilidade ilusórias do corno manso.

Em 1954 o presidente Getúlio Vargas foi derrotado pela oposição que explorou a corrupção em seu governo, mas visava interromper as sucessivas conquistas da classe trabalhadora como o décimo terceiro salário criado pelo ministro do Trabalho, João Goulart, demitido em seguida para satisfazer os patrões inconformados. O Globo chegou a dizer em manchete de primeira página que o décimo terceiro causaria falências e seria a derrocada da economia. Por aí você faz ideia da campanha feroz que Vargas enfrentou no escândalo da corrupção que ele próprio chamou de “mar de lama”.

A história registra muitas inovações que desagradaram o capital nacional e o estrangeiro: monopólio sobre a exploração de petróleo com a criação da Petrobras, criação do atual BNDES, do Banco do Nordeste, da CACEX, o limite de 8% do lucro das empresas estrangeiras às suas matrizes, e outras. Mas o que interessa aqui é o papel histórico da imprensa como parte do poder. Havia, apenas no Rio de Janeiro, a capital da república, dezenas de jornais, a grande maioria diários, matutinos e vespertinos: O Globo, Última Hora, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Jornal, Diário de Notícias, O Dia, A Notícia, Tribuna da Imprensa, Jornal do Commercio, Luta Democrática, Jornal dos Sports e talvez mais algum que me escapa no momento. Todos, à exceção da Última Hora de Samuel Wainer, pediam a cabeça do presidente, que se suicidou em 24 de agosto daquele ano.

Por trás da campanha contra Getúlio Vargas e o trabalhismo estavam a elite empresarial já citada e os militares que desde a proclamação da república, em 1889, dão as cartas na política brasileira, sempre com mão de ferro contra defensores do Brasil independente e desenvolvido e restabelecendo, sempre que acha necessário, a paz de cemitério ideal para os negócios. O suicídio teve tal impacto que abortou o golpe empresarial-militar, adiando-o por dez anos. Em 1964, com João Goulart presidente e as reformas essenciais para o desenvolvimento, tipo a agrária, a eleitoral, com extensão do voto aos analfabetos e aos militares de baixa patente, novamente a fiscal, com a limitação da remessa de lucros das empresas estrangeiras, a urbana, com habitação digna para todas as famílias, a bancária, com expansão do crédito aos produtores, e a educacional, com a extinção do analfabetismo e a adoção do método Paulo Freire, o golpe veio com toda a força.

A simples descrição sumária das propostas janguistas explica a urgência o golpe empresarial-militar adiado da década anterior, e foi o que aconteceu no dia primeiro de abril de 1964, no ápice de uma feroz campanha de mídia contra o presidente da república. Jango, estancieiro gaúcho dono de terras e de gado no Rio Grande do Sul, foi transformado em ameaça comunista apoiada por sindicatos e centrais de trabalhadores. Não por acaso, quando o golpe se consumou o Ibope divulgava pesquisa com a aprovação do governo e do presidente por mais de 60% dos brasileiros. No entanto, a manipulação da opinião pública pela imprensa foi de tal ordem que no dia do golpe à noitinha eram visíveis inúmeras velas acesas em janelas de barracos na favela em louvor a Deus por ter livrado o Brasil do comunismo.

A imprensa era composta pelos mesmos jornais da época de Vargas e seu prestígio era diretamente proporcional à liberdade de opinião e de informação. Isso mudou radicalmente depois de 1964 com a asfixia econômica comandada diretamente pelos militares, através da suspensão da publicidade oficial; e indiretamente pela pressão sobre o setor privado para fazer o mesmo. O êxito desse processo pode hoje ser constatado nas bancas de jornais, onde existem uns poucos diários, sendo dois da Infoglobo, no Rio de Janeiro, e outros tantos em São Paulo, onde ainda se destacam O Estado e a Folha de S. Paulo.  

Em abril de 1964, anunciando a nova era no Brasil, a revista americana Reader’s Digest publicou reportagem de capa sobre o golpe de estado em suas edições em inglês e português com o título “Brasil, a nação que salvou a si mesma” – uma ode ao golpe fomentado pelo governo do seu país. O que se seguiu foi a ditadura militar de triste memória, contra a qual logo os meios de comunicação foram se posicionando, até o movimento Diretas Já!, em 1984. Vale destacar neste ponto que os comícios das Diretas que começaram a percorrer o país a partir de Goiânia (em 15/6/1983) não mereceram cobertura da mídia, salvo registros tímidos de tumultos e confusões. Quando aconteceu o da Praça da Sé em São Paulo, no dia do aniversário da cidade em 1984, com a presença das principais lideranças políticas, intelectuais e artísticas, diante da absoluta impossibilidade de ignorar evento de tamanha magnitude a Rede Globo sobrevoou de helicóptero a multidão calculada em mais de um milhão de pessoas e disse, na maior cara de pau: “O paulistano saiu às ruas para comemorar o aniversário da cidade”.

Com Fernando Collor em 1989, primeiro presidente da república eleito pelo voto direto desde Jânio Quadros, em 1960, repetiu-se o fenômeno, com a corrupção desvendada a partir de um Fiat Elba de aquisição mal explicada e que se desdobrou em outros casos comandados por seu tesoureiro Paulo César Farias, que agia em nome do presidente para extorquir, roubar, chantagear e o que mais a mídia dissesse. A maior parte era fato, veio o primeiro processo de impeachment da história e Fernando Collor renunciou momentos antes de o Senado cassar-lhe o mandato. A grande campanha midiática foi deflagrada pela revista Veja a partir da entrevista-bomba de Pedro Collor, irmão de Fernando, denunciando PC Farias e o esquema de corrupção montado à margem do Palácio do Planalto.

Mesmo abortado pela renúncia no último minuto, o caso de Collor criou o precedente perigoso ao qual se referia o governador do Rio de Janeiro à época, Leonel Brizola, cujo temor era que o impeachment se tornasse instrumento político para afastar presidentes eleitos. Aconteceu em 2016, quando o país assistiu ao afastamento de Dilma Roussef por “pedaladas fiscais” praticadas antes e depois dela sem punição. Novamente a imprensa se posicionou ao lado da elite empresarial e aos interesses capitaneados pelos Estados Unidos e seu “brother” negro de alma branca capitalista Barack Obama.

A campanha, agora, não se limitava apenas à deposição da presidente, mas à implantação do projeto de desmonte do país, que se seguiu na Operação Lava Jato e o juiz Sérgio Moro arrepiando as leis com a dócil cumplicidade do Supremo Tribunal Federal. Milhões de trabalhadores perderam empregos direta ou indiretamente no desmonte industrial promovido pela Lava Jato, Moro e sua quadrilha de procuradores. A imprensa onde estava? Ao lado deles, divulgando mentiras, destruindo reputações, dando sua força importantíssima ao discurso moralizador do combate à corrupção (“Nunca se roubou tanto neste país”, lembra?) e ajudando a eleger o incrível Jair Bolsonaro que toda a mídia sabia muito bem quem foi nos 27 anos na Câmara dos Deputados em Brasília.

Agora chegou a hora da onça beber água, dizia-se nos tempos em que o cipó de aroeira doía no lombo de quem mandou dar. Em seu projeto autoritário e totalitário, ele se julga no direito de calar a imprensa. Tem apoio de parcela das forças armadas, das polícias militar e civil, da Federal, de procuradores e juízes (inclusive entre os que pretende cassar quando consumar o golpe), dos falsos líderes evangélicos e de uma parcela da população brasileira que não se caracteriza como gado: formadores de opinião, líderes em empresas, governos, esportes; e ainda habitantes do “Brasil profundo”, do campo armado, das milícias, das facções criminosas, dos torturadores, feminicidas, homofóbicos, dos assassinos de aluguel nas cidades e no campo.

Agora a imprensa se dá conta de que criou cobra no quintal, chocou o ovo da serpente, e os empresários se preocupam com o fracasso econômico; seus chefes aqui e no exterior começam a temer pelo futuro do “Brasil pária” no mundo, como preconiza o absurdo chanceler Ernesto Araújo em seu antiglobalismo paranoico. Na mesma velocidade com que avança a pandemia no país, recua a reação a Bolsonaro por parte de quem pode contê-lo. Parece haver um clima de “ruim com ele, pior sem ele”, “vamos esperar um pouco”, “o país não aguenta mais um trauma agora” e outros pensamentos que contrariam o passar dos dias sombrios e sem perspectivas.

Bolsonaro joga todas as suas fichas no Centrão que comprou por R$ 3 bilhões para eleger os presidentes do parlamento. Pode ganhar, mas o que se seguirá é uma incógnita, o pessoal é useiro e vezeiro em traições, a começar pelo deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, com quem Bolsonaro conta para atingir seus objetivos políticos. Se não der certo, ele vai correr para o lado oposto, a ilegalidade, o gabinete do ódio, as armas, as forças militares. O empresariado, até por falta de opção, fechará com ele, e aí a imprensa vai negociar para entregar os anéis e preservar os dedos. Não aprendeu nada com a sua própria história no contexto da república e voltará a ser propagadora da história oficial.