Impactos da pandemia no sistema socioeducativo brasileiro

Falta de contato com a família, aulas remotas e atrasos nas decisões judiciais afetam mais de 18 mil adolescentes.

foto: divulgação Degase

No Brasil há 18.086 adolescentes em cumprimento de internação em instituições socioeducativas e 16.161 vagas, um déficit de quase 2 mil vagas. Se for considerada, ainda, a média de pedidos pendentes mensais, o déficit alcança quase 5 mil vagas.

Os dados são do Panorama da Execução dos Programas Socioeducativos de Semiliberdade e Internação nos Estados Brasileiros e no Distrito Federal, divulgado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) em 2019. O que já seria uma situação caótica, piorou muito com a pandemia do novo coronavírus. 

Somente nos primeiros meses de 2021, no socioeducativo foram registrados 1.541 casos oficiais da Covid-19 entre adolescentes em privação de liberdade, além de 5.104 servidores, com 32 mortes registradas, segundo monitoramento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 

Para tentar conter a transmissão da doença, o CNJ estabeleceu uma série de medidas e orientações para as mais de 400 unidades de internação e semiliberdade em todo o território nacional, como a suspensão das visitas presenciais e outras medidas sanitárias. 

A pandemia também provocou a interrupção do ensino presencial, o que preocupa especialistas, como a promotora Danielle Cristine Cavali Tuoto, da 3ª Promotoria do Adolescente em Conflito com a Lei, de Curitiba. “Com as escolas fechadas, a chance de evasão escolar se torna muito maior”. 

A assistente social do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) de Joinville, Viviane Salles, frisa que os jovens que cometem atos infracionais geralmente estão fora das escolas ou com uma relação estremecida com o ambiente escolar.  

“São jovens repetentes, com muitas faltas, às vezes, expulsos de alguma instituição, que não enxergam mais a escola como ambiente de aprendizagem e de perspectivas para o futuro”.

Um dos principais desafios dos CRAS é refazer esse vínculo com as escolas e atividades comunitárias. “A vida escolar é essencial para a formação do adolescente. Antes da pandemia, contávamos com toda a equipe da escola para acompanhamento desses jovens, mas agora a equipe escolar foi reduzida ao professor, que se tornou um tutor de conteúdos remoto. É quase impossível integrar a distância”, diz Viviane. 

A falta de acesso a dispositivos eletrônicos e à internet é outro problema que dificulta não só a aprendizagem como visitas e audiências on-line. Maria de Fátima, mãe do adolescente T.O, de 14 anos, que cumpre medida socioeducativa em regime fechado em uma unidade na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, afirma que as ligações deveriam ser semanais, mas esse direito não é efetivado.

“Não consigo contato todas as semanas, a gente liga no horário combinado com a assistente social e ninguém atende. E as primeiras ligações não eram por vídeo. Eu preferia ir lá vê-lo nem que fosse separada por um vidro”. 

Maria revela ainda que, durante as ligações, o adolescente é acompanhado por um agente que o cerceia e escolhe os ângulos da câmera. “Quando eu pergunto se há alguém doente ou como estão as medidas de segurança, o agente desvia a câmera ou a ligação cai”. Maria também diz que é possível ver pessoas sem máscaras e pequenas aglomerações. 

Para ela, um dos principais problemas é a falta de interação humana desde o processo judicial até as visitas. Na audiência virtual de seu filho, Maria conta que o áudio falhou muito e o juiz não conseguiu interpretá-lo direito. Para ela, se tivesse sido presencial, teria sido diferente. 

“O Policial Militar não teria coragem de falar aquelas mentiras se não tivesse atrás de um computador. Ele não diria aquilo olhando nos meus olhos, nos olhos do meu filho”, afirma Maria.

 A audiência aconteceu em julho do ano passado. Segundo a mãe, o policial responsável pela abordagem e apreensão do seu filho deu um depoimento inconsciente. “Ele disse que meu filho sempre age de forma suspeita, que ele é bipolar, que já é conhecido da polícia, ou seja, ele afirmou que a polícia persegue meu filho. Ele não disse o que é essa forma suspeita”. 

Maria afirma que seu filho não possui diagnóstico de bipolaridade e que há quase um ano todos os assaltos do bairro onde moram eram automaticamente ligados a ele, mesmo sem provas. “Muitas vezes a abordagem foi violenta. Quebraram a bicicleta dele, jogaram a mochila no mar porque não acharam nada. Eles queriam que ele fosse bandido, mas ele não é”,  frisa Maria. 

Ela se sente prejudicada pela audiência on-line e acredita que no caso de adolescentes as audiências deveriam ser presenciais. “Ele tem 14 anos, estava com medo do policial, do juiz de tudo e o fato da conexão estar ruim e ter essa distância piorou tudo”, afirma a mãe do jovem.

Maria é atendida pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro e faz parte do grupo de mães do instituto Sou da Paz. A psicopedagoga do instituto, Ana Letícia da Silveira, diz que o período pandêmico agrava as desigualdades sociais e reforça ainda mais os estigmas sobre a juventude que está cumprindo medida socioeducativa. “Boa parte da mídia, do Estado e da sociedade civil já acha que esses jovens são bandidos e que não merecem qualquer acolhimento e políticas públicas. Em uma situação de pandemia, são jogados ainda mais para margem, um exemplo disso são os comentários da sociedade contra a compra de EPIs para as unidades”, explica Ana. 

Matéria originalmente publicada no jornal A Voz da Favela de março de 2021.

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