Empreendedorismo: a influência do quilombo na gastronomia internacional

Paulo teve seu primeiro contato com a cozinha através da avó materna, Dona Zizi, quitandeira que fazia pães, bolos e doces para vender na barraca que tinha na feira. - Créditos: arquivo pessoal

No coração das comunidades urbanas, uma confeitaria popular emerge como um símbolo de tradição, sabor e resiliência, especialmente quando liderada por talentosas confeiteiras e confeiteiros afrodescendentes.

Na essência da confeitaria de bairro, é possível identificar histórias de perseverança, sabores que transcendem gerações e uma conexão autêntica com as raízes culturais.

Como a história do chef Paulo Rocha, um confeiteiro que ultrapassa fronteiras sociais, destacando a importância da representatividade negra na culinária internacional.

Isso destaca não apenas a maestria artística dos confeiteiros, mas também a importância que esses empreendimentos desempenham na preservação da identidade local e na criação de laços comunitários duradouros.

Paulo, nasceu em Chapada do Norte, cidade quilombola com mais de 90% da população negra, localizada no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Ele teve seu primeiro contato com a cozinha através da avó materna, Dona Zizi, quitandeira que fazia pães, bolos e doces para vender na barraca que tinha na feira.

 

Este universo açucarado transcende simplesmente a produção de delícias doces; ele encapsula a riqueza cultural, a herança culinária e a força empreendedora nas veias das comunidades marginalizadas.

créditos: Thamilou

Trajetória: do quilombo a uma das maiores metrópoles do mundo

Paulo, o mais velho de cinco irmãos, aos 13 anos, saiu da terra natal rumo à capital paulista  para morar com o pai – a mãe ficou em Minas porque precisava de cuidados por questões de saúde e os irmãos ficaram sob os cuidados das avós-, em busca de melhores condições de vida.

E foi com o pai, inclusive, que aprendeu a cozinhar arroz, feijão, carne para que ele pudesse cuidar da casa e preparar o próprio alimento. Inconscientemente, seu relacionamento com a gastronomia já tinha começado.

Aos 16 anos, teve sua primeira oportunidade do primeiro em uma confeitaria na Zona Leste de São Paulo. “Quando  eu cheguei na confeitaria pela primeira vez, tive a certeza de que era aquilo ali que queria fazer, tinha a certeza que queria ser confeiteiro e essa certeza veio muito junto com a minha avó. Nunca deixo de mencionar ela por onde eu vou, porque ela é a peça principal, a chave para eu ter me tornado um grande confeiteiro. Então, comecei minha carreira em 2004 nessa confeitaria de bairro popular, mas sempre tive um sonho de conhecer a alta gastronomia, a alta confeitaria. ” conta Paulo Rocha.

Ele trabalhou nessa confeitaria por cinco anos, passou por outras experiências de trabalho, até 2014, quando chegou na alta confeitaria, na Jelly Bread, onde ficou por dois anos e conheceu a chef confeiteira Amanda Lopes, profissional que o ensinou as bases da confeitaria francesa.

Paulo também relembra os momentos com sua avó na casa do interior e principalmente das puladas de muro nos recreios das aulas, no horário do lanche. ”A relação com a minha avó era maravilhosa, sempre muito carinhosa. Aquela coisa, casa do interior, casa de vó, coração de mãe. Todo mundo entrava, minha avó sempre muito carinhosa e atenciosa. Sempre a vi como uma guerreira que sempre fez os pães, doces e bolos de forma artesanal e ancestral que foi passado da mãe dela. Uma coisa que nunca contei, era que eu estudava na escola na frente da casa da minha avó e nunca gostei da comida da escola, então quando dava a hora do recreio eu pulava o muro da escola, entrava na casa da minha avó quando ela não estava ou não via, iá lá nas latas de pães, biscoitos, pegava algo, corria e voltava para a escola. E quando não tinha eu arrumava confusão, eu era menino arteiro do interior”.

créditos: Thamilou

Chef de confeitaria francesa sem nunca ter ido a França

Depois do trabalho, a formação. Com alguns anos de experiência, em 2016, Paulo entrou na faculdade de gastronomia em São Paulo, no SENAC e começou a trabalhar no Jockey Club, em 2017, clube frequentado pela classe alta paulistana, onde assumiu a função de chef confeiteiro no Villa Jockey e passou a trabalhar também em grandes eventos.

Dois anos depois, Paulo viu no Instagram um vídeo do chef francês Erick Jacquin, anunciando que estava montando uma equipe para o seu novo restaurante. Ele foi contratado. “Fui contratado porque Amanda Lopes, minha mentora, foi confeiteira dele. Ela me ensinou muito, muito mesmo e ele viu isso no meu currículo. Quando conheci o Jacquin pude colocar todos os meus aprendizados em prática e me especializar em alta gastronomia francesa sem nunca ter ido à França, através de muito empenho, estudo, convivência com profissionais que conhecem o país e foi esse trabalho que me levou à gerência do setor de pâtisserie de toda rede dele. Tenho consciência da responsabilidade que tenho em ocupar um lugar como esse e ser referência para pessoas negras, como eu”, comenta Paulo.

A transição da confeitaria de bairro para a alta gastronomia francesa teve um grande impacto através da  mentoria da chef confeiteira Amanda Lopes durante a trajetória de Paulo. O confeiteiro conta que a transição foi árdua, dolorosa e demorada. De acordo com ele, teve que sacrificar muitas coisas, até mesmo ter várias noites sem dormir, tudo isso para alcançar seus objetivos.

“Foi doloroso, embaixo de muito sacrifício, noites sem dormir e até que cheguei na confeitaria francesa, eu senti que estava preparado. E quando cheguei, foi a chef Amanda Lopes que me aceitou e me deu oportunidade de realizar meu sonho, de estar ali, e dali pra frente dependia muito do que eu iria entregar, minha dedicação para tudo aquilo. E sempre me mostrei muito dedicado e esforçado e ela sempre me deixou ficar perto dela enquanto trabalhava e eu absorvi o máximo que eu pude para o meu desenvolvimento. Era um lugar onde o estudo era lembrado, valorizado e foi de lá que eu saí e fui me formar em gastronomia, onde fui me formar em gastronomia para ter um conhecimento maior das teorias, dos porquês, das reações e toda aquela química que envolve a gastronomia”, relata o chef.

“Eu entendo que minha representatividade hoje é muito grande e foi um lugar onde eu quis me colocar” – créditos: Thamilou

Da presença no Instagram aos reality shows

Em 2017, em paralelo ao trabalho no Jockey Club e à faculdade, Paulo começou a produzir conteúdo no Instagram com o objetivo de passar para as pessoas seu conhecimento, sobretudo para as pessoas negras que ele não via nos ambientes que passou a frequentar e queria incentivar, despertar o interesse dos seus pares pela gastronomia. No entanto, essa presença digital o levaria a alçar voos mais altos do que ele pensava.

“Então, em 2019 a equipe da GNT entrou em contato comigo pelo Instagram, me chamando pra participar do programa Que Seja Doce. Aceitei o convite, participei e fiquei em segundo lugar na competição. Depois, em 2021, veio o convite da Netflix também pelas redes sociais para o Iron Chef Brasil, um programa com um formato diferente que estava vindo pro Brasil pela primeira vez. Aceitei o desafio um pouco receoso, mas sabia que estava pronto e estava preparado. Fui vencedor da minha batalha.  O terceiro contato foi novamente com a GNT para o programa Esse Doce Tem História, já como apresentador, trazendo as receitas, contando histórias. Tenho muito orgulho desse trabalho e foi um efeito cascata, que me rendeu também participações no MasterChef”, destaca o chef.

créditos: Thamilou

“Eu entendo que minha representatividade hoje é muito grande e foi um lugar onde eu quis me colocar”

Com quase 20 anos de experiência e 38 anos de idade, os principais objetivos para o futuro são fortalecer sua imagem como referência em alta gastronomia francesa no Brasil e ser referência para cada vez mais pessoas, principalmente oriundas de regiões periféricas e comunidade quilombolas. Especialmente por entender que é uma referência para pessoas negras na gastronomia.

“Sinto que isso é muito importante porque quando comecei na gastronomia eu não tinha uma referência de pessoa preta, naquela época a mídia que a gente tinha era a televisão. Então a gente não ligava a TV e via uma pessoa preta cozinhando. A referência que eu tinha, que cozinhava era minha avó, mas quando eu ligava a tv não tinha. Eu entendo que minha representatividade hoje é muito grande e foi um lugar onde eu quis me colocar e sempre lutei para que as próximas gerações de meninos e meninas pretas que vem do quilombo, da tribo ou que venha de qualquer lugar do país que eu possa ser a referência deles, a referência que eu não tive, para que possa ajudar de alguma forma a não perder a fé, a esperança e acreditar que sim, independente de onde eles vem nada é fácil. Mas com força  determinação e vontade e se aproximando das pessoas certas, nos lugares certos e sendo uma pessoa do bem a gente consegue chegar onde a gente quiser. Eu sou a prova viva disso, to aqui para ser a referência que não tive, tenho plena consciência desse lugar que eu estou e ocupo. A ideia é trazer muito mais gente para empretecer essa área, a cozinha, que é um lugar majoritariamente de pessoas brancas”, conclui o chefe Paulo Rocha.

Atualmente tem mais de 100 mil seguidores apenas no Instagram e destaque de programas como Iron Chef Brasil (Netflix), Que Seja Doce e Esse Doce Tem História (GNT).

@chefpaulorocha

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