Crônica – Testemunha Ocular

Testemunha Ocular
Crônica - Testemunha Ocular (Foto: Representação).

Aos olhos o giroscópio. Única luz que retinia por aquelas bandas, como os faróis passageiros. Nem ambulância, nem bombeiro, nem os “home”. Adormecia o dia. Dentro do carro uma jovem e dois menores, supostamente filhos. Um pneu dianteiro furado, uma lanterna batida, um bloqueio de concreto mexido.

Quatro horas antes, uma freada bruta, rápida. Um som de batida que, confundido com um tiro de fuzil, fez a dona do bar se deslocar à riba da calçada. Em menos de trinta uns desolados à beira da pequena favela se concentraram em dois estabelecimentos digno de moscas. Pediam fiado. Um lava-jato parou. E cultos foram interrompidos. Quatro horas antes, três pastores em três assembléias distintas, reconheciam intimamente, enquanto pregavam, a dor de seus automóveis terem sido atingidos.

Já um tempo, contraditoriamente, o que mais se multiplicava nas favelas, eram igrejas, bares, empreendedores.

Alguns puderam ver um cão sair do horizonte do acidente e ir deitar-se gemendo na divisória da pista. Chiou pela tarde à dentro o coitado, sem acolhimento. A maioria comentava movimentos através do fumê, imperceptível, que se cercava o carango.

Apesar de bloquear a descida do elevado, nenhum congestionamento formou. Poucos arriscavam passar ali. Rota de fuga conhecida.

Três horas antes, antes que os primeiros escolares uniformizados tomassem as perspectivas como fossem um arrastão em algazarra, um homem se aproximou, mancava da perna esquerda, levemente arrastando o chinelo. Fez sinal. Dichavada na cintura, não obteve sucesso. Recuou devagar apontando o cano, deu as costas, se comunicou com a mão, mandou um rádio, retornou ao expediente.  Avisos eram comuns. As malas traziam o churrasco.

Apesar da dona do bar insistir que ninguém havia saído correndo pela porta do motorista, a notícia já se espalhava avultando vigorosas cores e versões.

O Boina, que dizia ser veterano de tropas especiais em sua distante juventude e que assim o chamavam por usá-la para tapar a calvície centrada no topo da cabeça, a espera da fixa do bilhar, depois de uma dose de mel com alcatrão, pronunciava aquela que era a solução do caso mais plausível à plateia de bebuns ali presentes. Bastava um tiro de sniper em cada pneu, em seguida, um lança chamas para fazer correr as galinhas, se houvessem, do poleiro. Muitos diziam que o Boina tinha sido soldado raso numa granja de interior.

Duas horas antes, o caçula e temporão da senhora gorda, de atos pouco delicados que cobrava por ali, lá no final do corredor ao lado do mictório, fechava os cadernos, ajuntando um ao outro, conforme a bigoduda do balcão não desconfiasse da prova escondida no fundo da mochila. Atravessava de uma a outra ponta, servia dose dupla de uma pinga com cobra dentro ao Manel. Pedreiro que molhava a garganta antes levantar muros. E que comentou que o reboque na dúvida fora embora, ainda que o carro houvesse buzinado.

O garoto ao se virar para avisar a mãe tomou logo um safanão, que o fez pular a mostra de cigarros que havia a sua frente. Levou a perceber de canto de olho a mochila violada. Correu. E correu. Não mais retornou.

Uma hora após, das circunstâncias que levaram os uivos do vira-lata que ninguém se compadecia, gestos beligerantes de força das lajes de capangas de munição empunhadas vinham como aviso à facção ao lado, que o carro filmado representava. Um bolero antigo de sofreguidão latina tocava de uma caixa que rangia, a dona de buço fino mandava, em alto tom, avisar ao olheiro, menino ainda, que era uma família lá dentro, não uma provocação dos “alemão” ao lado.

Às dezoito o sino no alto da torre lembrava que, alguém mais sádico para além do incêndio, do último arder de nuvens do desligar da lâmpada, observava timidamente todos em sua ruína. Essa época do ano assobiava frio o vento. Os corredores se inflamavam daqueles que, tratados feito rebanhos impacientes, a vida não era mais que entradas e saídas apertadas.

Enquanto as casas se tornavam até o céu, estrelas piscantes ao longe, a luz interna do veículo denunciava não estar vazio. Três indivíduos agitavam os raros cachaceiros que não arriaram do evento, durante a longa tarde.

A polícia chamada, não deu as caras. Acharam, naturalmente, ser tarefa do tráfico. O comando ali esperaria o rush passar. Precisariam maior espaço de ação. Com a bacia deslocada, já havia tremido, já havia chorado, o cão, agora, com os pulmões esvaziados, os olhos apagavam. O reboque que arremeteu do local por umas duas, voltava com a garantia da ligação de um segurança. Foi quando uma jovem e duas crianças, de fato, tornaram-se evidentes aos rumores e testemunhas.

Às dezenove o giroscópio era ponto luminoso virando a curva da rua. E antes que pudessem restituir a rotina imprescindível, surgia na pouco afável voz de um velho rouco ao fundo, disparando verve e mordaz:

− Tudo isso porque os granfino têm é medo de pobre!? Haraa…

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