Crônica: O inquilino

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Pelas frestas gradeadas, que com bom gosto as chamava de janela, recebia a ininterrupta visita dos primeiros sintomas do dia ao artificial fenômeno dos postes. Mudara-se do centro da cidade à quina de um salão suspenso. Com acesso por meio de rampa. Não sofria mais com a cheia das ruas. Limitava-se, no entanto, a um velho sofá quebrado que servia de cama, três caixotes de feira como prateleiras, vassoura pinha sava careca, pequeno tapete adquirido na vizinhança, pro seu cão deitar, que com orgulho chamava de quarto.

Sob o anoitecer, enquanto um contingente esmagador, dos ‘mãos-de-obra’, chegava às plataformas dos bairros próximos, nem lavado o rosto, mal descansado, o inquilino de pé, seu companheiro a tiracolo sumiam, como miragem ao trânsito. Poderia se ver a mesma intrigante figura, andar arrastado, torto, até finais de semana, no mesmo horário, ainda que chovesse. Deitava-se, do contrário, ao passo que a peãozada retornava relutante do sono partido ao embarque. Depois de verificado com cuidado o pouco que tinha, desmoronava, de certo modo quitado, ainda que a massa despersonalizada, ao lado, novamente, se abatesse sobre ele.

A cada crepúsculo o sujo amigo, erguia as orelhas, fuçava-lhe o rosto, rosnava a estranhos, latia ao dono como relógio. Seguiam os dois, até o assobiar da distância, ocupado dos lixos, convencidos da dependência um do outro. Durante a jornada de garimpo que, seguramente, ultrapassava dez horas, catava, cheirava, por vezes lambia, na dúvida… O homem e o cão exerciam o mesmo ofício. E, assim vistos com desdém. Como seres indissociáveis. Com êxito, comiam algo intacto ao chão, ao latão, e dividiam. O homem e o cão que havia instantes, pedido uns sete passantes, qualquer trocado, devoravam em segundos, o que, por sorte, sobrara do último dos obreiros da igreja, não antes de coagidos a resmungar rezas, fingirem intervenção do além, além da própria fome.

No cair das forças, madrugada ainda, a fila do ferro velho era enfrentada. Um porto movimentado por àquelas errantes almas da noite. Ninguém se engraçava, facão na cintura, bom manejo, porque rua não é brincadeira. O comércio ali era de gente por tempo e, por química, que amenizava dor, que garantia forças, que essa hora se havia esvaído. As negava veementemente, mas não pôde nunca dizer que nunca as usou. Quando em vez, também se arranjava. Não nega. Bastava o gramado mais ao canto da árvore, abaixo da ponte, apontava, num valão ali perto, que chamava de rio.

Chegara fugido. Porquanto, abria um fio, dizia, entrecruzando memórias. Revoltado, lavrador, pai de família, expulso por armas de fogo. Prefeito envolvido. Grileiro envolvido. Há anos nessas terras de cá. Sem contato com os filhos. A girar com documento perdido. Em eterno despejo, hoje inquilino. Muito a partir dali deu-se margem a imaginação. Um sobrevivente de massacre ou fora assassinato, crime de honra talvez, duelo de famílias, ou simples líder camponês exigindo condições de trabalho? Um entrevero com a polícia, a capangadaga, a política… O que povoava a treva do homem, já não saberemos. As cicatrizes no rosto que digam por si. Do exílio forçado, por fim, fora parar, o inquilino, residindo aqui em Ramos, Estação Santa Luzia, parador número dois, BRT, que, estranhamente, tem a sigla em inglês de Bus Rapid Transit, seu senhorio.

A falta de solução à tragédia da condução ao trabalhador, afinal, promoveu a depredação, que justificou o fechamento, que a placa chamava vandalismo, que possibilitou o inquilino, o qual o locador nunca soubesse. Ainda que reaberto, dividia a vigília, discreto, junto aos funcionários credenciados.

Varria, capinava a calçada da padaria perto, onde agradeciam com café e pão, fora então ali apelidado. Cuca quando via, chamava meu pai de irmão, e, concluía me saudar de sobrinho. Mas, dirigia a uns tantos desorientado. Vagar por longo tempo, nos obriga mesmo a perder o endereço do próprio eu. Meu pai se foi, ele se foi, nem rastro do cão, seu quarto ali já não há. E enquanto a plataforma, que um dia o deixou ancorar, está no caminho de centenas de olhos dilacerados, pelo ardo transplante, que a desigualdade da cidade exige, não vejo senão, ainda que cheio, vazio.

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