Crônica: notícias e testemunhos de um velho par de calçados

Em fins de março, no tempo das chuvas, contrariando expectativas, chega à notícia que um par de calçados, duramente surrado, rompeu, descendo a rampa de chão do alto de um morro.

Costurado a mão, como os antigos. Nos últimos oito anos o fez com dignidade. Que entre as cinco e cinco e quinze surgia, depois de mais uma curva, sem direito a domingo, desviando buracos, poças, bocas no caminho.

Os línguas grande diziam que, novo ainda, fora pego correndo ‘dos cana’: três corredores estreitos, um muro de contenção, o quintal de uma senhora que fazia despachos. Um minuto e trinta e seis minutos depois, abatido, fora encontrado deitado. A três metros um do outro, sem dono, perto da fila do pão, um anônimo os reuniu, os jogou no camburão. Coberto. Transportado.

Antes do destino, extraviado, adquirido, exposto, vendido. O par de calçados era embrulhado a um menino pela avó. Seu último ato memorizado antes de um alzheimer arrasador. Motivo ao qual usado, pela família, para fazê-la recordar do neto.

Remendado, porém, nas ruas de baixo, onde o anúncio dizia: Cti dos pisados. Mais um passo e outro, saltou o primeiro degrau. Direita, esquerda sincronizada. Parou inevitavelmente, passou a roleta, repousou em torno de uma hora e trinta minutos, até erguer-se e assim manter, por mais quarenta, com algumas variações de equilíbrio, antes de perseguir o horário atrasado do dia.

Onde, na Rua Ramalho Ortigão ao atravessar as calçadas, à esquerda que dá a lateral da Igreja São Francisco de Paula, pulando um bueiro aberto, calculando velocidade e flexibilidade exigida, tombou, já protegido dos carros que, naquele ponto, são cegos a qualquer obstáculo.

Motivado pela recuperação pós-operatória de habilidoso sapateiro local, somente veio a descosturar, entretanto, doze dias depois, em meio obstinada rotina empreendida por seu jovem tutor. Ouviu de mais opiniões. Nenhuma os agradou. Até que foi aposentado por invalidez de súbito, num sonho de estradas nunca antes percorridas, o que prometeu. Amarrou os cadarços, cerimonioso, no retorno de casa, e os pôs a contemplar os pássaros de alta tensão.

E de lá o podia ver, com os galos e os morcegos. E pelo o que o substituiu. O novo par de calçados com molas desceu as ruas úmidas, da garoa da noite passada, sem vacilação de aderência. E tantas quantas vezes o fez. Pôde assim, comprovar o privilegiado observador, inabalável, por apenas, mais dois anos. O que muitos especialistas usaram como experiência científica irrefutável, do quanto, os artigos fabricados em série, na sociedade de consumo, têm média produtiva de vida menor.

Logo após a lua se esconder, no mês de julho, às vinte e duas horas e dezesseis minutos veio a cabo novo companheiro.

O vento zunia ao gosto da linha tensa. Não batíamos muito um com o outro. Se as aves, que não param quietas, dividissem a intimidade da vizinhança, as intrigas menores como, da dona do sacolé, do pipoqueiro, ou da manicure, que espera atrás da cortina o marido da amiga passar, da evangélica que se arruma pro pastor e não perde uma vigília, do vapor, que não paga pensão e se acha no direito de reclamar dela à gerência, ou ainda dos bêbados de botequim que, em cada história de vitória, carrega um pouco de solidão, quem sabe, então, os dramas que se vêem repletos nas encruzilhadas diminuíssem, seguramente, a velhice daqui do largo horizonte, seria menos tediosa.

Passada uma celebração de anos, em décadas. Quatro e meia ao todo, sem que nada de extraordinário acontecesse, sem que nenhum novo caminho desejado viesse. Mas, era hábil demais em se estreitar nos becos impostos, enlaçado demais para ruir as suas cordas. Incapazes, os persistentes sapatos, talvez desejassem tirá-lo de seu cárcere. Detê-lo dos gestos automáticos.

Onze camaradas de fios depois, segundo o primeiro contou, veio à notícia do alto do morro, que o último par de calçados, ainda que não muito usado, que todos esperavam na hora marcada, não desceu.

Entre cinco, seis, até oito, não surgiu. Não desviou, pisou em falso, freou, ou deslizou, não puxou degraus, nem pulou valas abertas, que as rampas das ruas de chão batido da favela, não mudaram, que o trânsito das ruas do centro não mudaram, ou o piso dos trens. Que dessa vez, no alto do cabo, não se aposentou. Onde, não aquele jovem, mas, o coroa de meia idade que fizeram de máquina, de todo modo, vai agora apodrecer. Que somente, hás dezessete e vinte dois, horário de Brasília, deixou seu rastro definitivo, mofando num lençol, depois de uma vaquinha da comunidade. E que juntos foram embalados ao caixão, e que um carro preto e dois caras gordos, os levaram.

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