A boca fala do que o coração está cheio

Croqui de Bolsonaro publicado na revista Veja. Imagem: Reprodução.

Bolsonaro disse quinta-feira, 12, em Palmas, Tocantins, que vai botar no pau-de-arara ministro eventualmente vinculado a corrupção. Já avisou também que servidor que atrapalhe medidas pelo desenvolvimento será mandado para a ponta da praia. Pau-de-arara é instrumento de tortura muito usado nas dependências policiais, todo mundo sabe, e ponta da praia é a base da Marinha na restinga da Marambaia onde opositores da ditadura morreram sob tortura ou execução sumária.

É por demais conhecida a admiração, diria idolatria, da família presidencial pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do Doi-Codi do II Exército, em São Paulo, mais notório torturador brasileiro de seu tempo, juntamente com o delegado Sérgio Paranhos Fleury, executor de Carlos Marighella e que levou frei Tito de Alencar ao suicídio no exílio.

Não causa estranheza, portanto, a cumplicidade entre a família presidencial e a milícia nascida na banda podre da polícia. Seus métodos são os mesmos e antigos. Senão, vejamos: em julho de 1995 Jair Bolsonaro foi assaltado na rua no Rio de Janeiro e perdeu a moto Sahara de 350 cilindradas e a pistola Glock 380 que trazia sob a jaqueta. Amigo do secretário de Segurança, dois dias depois a moto foi recuperada.

Passados oito meses, o ladrão foi preso num condomínio residencial em Salvador. Jorge Luís dos Santos, chefe do tráfico em Acari, foi transportado de avião para o Rio e ao amanhecer do dia seguinte estava morto por enforcamento numa cela da Polícia Civil na Barra da Tijuca, suspenso a 12 centímetros do chão por um nó feito com a camisa.

A perícia concluiu pela versão de suicídio com base no passado de fuzileiro naval de Santos. Um fio de náilon encontrado na cela simulando o nó de forca, chamado lais de guia, reforçou a tese da intenção de suicídio.

No dia seguinte ao enterro, a viúva Márcia deu entrevista em que negou o passado de fuzileiro de Santos, e deixou no ar a indagação: “Fica uma dúvida. Jorge Luís jamais foi fuzileiro ou serviu o Exército. Como fez aquele nó da forca?”

Márcia e sua mãe Terezinha Maria Frigues de Lacerda tinham testemunhado no inquérito policial do suicídio e um mês depois da entrevista foram encontradas mortas a tiros na Via Dutra. Na campanha do ano passado, no programa Roda Viva, Bolsonaro explicou: “Não matei ninguém, não fui atrás de ninguém, mas aconteceu”.

Ele era amigo de longa data do secretário de Segurança, coronel Nilton de Albuquerque Cerqueira, ex-comandante do Doi-Codi em Salvador, quando participou da caça a Carlos Lamarca, morto na Operação Pajussara, no interior da Bahia, em 1971.

Por tudo isso, sabemos bem das preferências dos Bolsonaro no quesito “amizades”. Com o episódio Marielle Franco tomamos conhecimento de sua vizinhança na Barra da Tijuca. O jeitão truculento e explosivo se espalha aos filhos e aos assessores em suas atividades legislativas.

Todos os nomes no inquérito sobre a morte da vereadora carioca pertencem a políticos de má reputação, policiais, ex-policiais, milicianos e parentes, um ambiente nada recomendável a pessoas de boa índole. Élcio de Queiroz e Ronnie Lessa são apenas os dois que executaram o crime, tem muito mais gente por trás deles.

Quem acreditou na luta contra a corrupção que levou Bolsonaro ao poder deve questionar, ao menos por curiosidade, o que Flávio, Carlos e Eduardo têm feito em seus gabinetes desde os primeiros mandatos legislativos. São sérios e honestos? Escapariam incólumes no teste do polígrafo? Duvido que passem até num exame psicotécnico.

E o papai, será probo como se apresenta? Serão seus métodos aprovados num tribunal isento? As respostas a estas e tantas outras perguntas não virão, porque Polícia Federal e Judiciário se deram as mãos para coonestar as eleições de 2018, apesar das evidências e denúncias de caixa dois, fake news e ameaças veladas do tipo “Só aceito um resultado: a vitória!”, “Agora os capitães é que vão mandar!” e “Quem não estiver satisfeito, pode ir pra Venezuela”.

O estilo antidemocrático e autoritário de Bolsonaro, que já ameaçou “varrer essa turma vermelha do Brasil”, exterminar petistas e outras façanhas, encontra eco muito além de suas relações pessoais. É música aos ouvidos de grande parte das Forças Armadas e da sociedade civil.

Agora mesmo, Walter Delgatti Neto, um dos hackers da Lava Jato, disse à Veja que um militar gravou a execução de um homem e enviou o vídeo ao general Braga Neto, então interventor federal no Rio de Janeiro, cuja resposta mostra que pouco se lixava para o assassinato: “Usando celular em combate? Você ficou doido?” Este trecho da entrevista foi retirado do site da revista logo depois de postado.

O próprio Bolsonaro desenhou o croqui da Operação Beco Sem Saída, em 1987, para explodir a adutora do Guandu, que abastece o Rio de Janeiro, em protesto contra os baixos soldos no Exército. Condenado na primeira instância, foi absolvido pelo Superior Tribunal Militar, em Brasília. No mesmo ano passou para a reserva remunerada com a patente de capitão.

Parece óbvio que desde aquela época Jair Bolsonaro desfruta de muito apoio dentro do Exército e das outras duas forças, até porque é um autêntico fruto do pensamento militar brasileiro pós-1964.

Para que não pairem dúvidas sobre a cultura onde Bolsonaro está inserido, lembremo-nos do plano de 1968 do brigadeiro João Paulo Burnier de explodir o gasômetro do Rio de Janeiro às seis horas da tarde de um dia de semana, vitimando possivelmente cem mil pessoas.

Havia também ideias de operações como a Mata Estudante, que dispensa explicações, e a que previa o sequestro de 40 políticos para lançá-los ao mar de avião a quilômetros da costa.

Já a década de 1970 ficou marcada por mortes suspeitas de personalidades de oposição, nos porões, em acidentes, internações hospitalares e envenenamentos, como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Zuzu Angel, Vladimir Herzog e tantos cuja história ainda está por contar.

Foi o auge da Operação Condor, das ditaduras militares de Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia para eliminar adversários.

Seguiram-se, nos anos 1980, explosões de bombas no Riocentro, na sede da OAB, em bancas de jornais que vendiam a imprensa alternativa, todas de autoria da direita raivosa, em especial a dos quartéis que perdiam as rédeas do poder político.

O resultado deste modelo não poderia ser diferente de um Jair Bolsonaro e seus companheiros de mentalidade tacanha, terrorista e ditatorial, que compõem a parte hoje visível do grande segmento civil-militar defensor do retrocesso a qualquer custo, no pau-de-arara, na ponta da praia, na cadeira do dragão, no desaparecimento e no extermínio.

Não é exclusividade das fardas a violência latente; na sociedade civil ela sempre existiu na tortura a presos comuns em cárceres privados, delegacias e dependências da Polícia Militar, inclusive e sobretudo em viaturas. Os antigos e temidos esquadrões da morte dos anos 60 e 70 não buscam mais a publicidade de então, estão admitidos e naturalizados na violência social do dia a dia.

Nas nossas cidades, populares exaltados não hesitam em incitar linchamentos, exigindo justiçamento em vez de justiça. Mais de dois terços das vítimas são negros ou mestiços, pobres, sem acesso a advogados, peritos, investigações paralelas e julgamentos isentos.

Juízes, a propósito, comumente são brancos elitistas que se pensam ricos, embora não passem de assalariados privilegiados do estado, como são militares, congressistas e, de uns anos para cá promotores, policiais federais, delegados, procuradores.

São outro tenebroso condomínio com a função precípua de preservar e ampliar privilégios de classe, apoiados na lei e na ordem e pela parcela mínima da população rica e poderosa, que jamais dependeu das instituições nacionais a não ser em defesa de seu patrimônio e de seus regulamentos para mantê-lo e ampliá-lo.

A eleição de Jair Bolsonaro e seus filhotes (claro que foram eleitos para governar com o papai) não significa um ponto fora da curva, uma extrapolação; antes ao contrário, foi o retorno ao rumo. Fora da curva foi a eleição de Lula em 2002 e o longo período do governo petista, até meados de 2016.

“Quero meu país de volta” era um dos principais bordões nas ruas favoráveis ao afastamento de Dilma Rousseff, a volta ao tempo de Fernando Henrique Cardoso, transformado em oráculo da direita desde a posse de Lula. Tempo de privatizações, entreguismo, rentismo e ciranda financeira a mil.

Nunca um ex-presidente foi tão ouvido e cheirado sobre os destinos da nação como FHC, desde Sarney (generais da ditadura não contam porque não eram presidentes, só comandantes militares no cargo).

Cumpre-se, e assim vemos todos os dias, a intenção do candidato Bolsonaro de voltar o Brasil meio século no tempo. Um país atrasado, desmemoriado, um povo amedrontado, triste, uma classe média remediada comprando funeral em suaves prestações mensais.

Quem se espanta ou se assusta com demonstrações dos imbecis em vários escalões do governo deve prestar atenção às palavras de Bolsonaro e seus filhos, que os nomearam. Elas traduzem desejos íntimos da gente que os entronizou no poder. Fardados ou paisanos, vibram e esperam que se cumpra tudo o que ameaçam. Afinal, a boca fala do que o coração está cheio.