Por Luigi Spera (Itália)
Enquanto os políticos e a maioria das mídias ocupam todo tempo em falar somente dos aspectos positivos das UPPs, nas entrelinhas da evolução dessa nova política de segurança pública, o perigo criminal no Rio de Janeiro vai crescer de uma forma diferente. Respondendo com organização racional à ocupação militar, os criminosos cariocas, estão acionando uma espécie de ‘mimetização’, mudando o jeito de agir contra o Estado. Uma mudança que junta a violência e a ameaça, para manter o medo na populaçao, com a organização e a ‘mentalidade’ miliciana dos ex-militares, para defender os interesses sujos. Isso acontece em dois casos diferentes.
O primeiro que se observa é a figura do traficante fechando acordo com a milícia, particularmente na zona oeste. Esta permite a venda de drogas mediante o pagamente de uma ‘taxa’ para diminuir a violência e os tiros, evitando assim investigações. Um outro observa o uso de grupos formados por ex-militares das forças armadas, cooptados pelo tráfico para controlar áreas de favelas com UPP, como a da Maré e a do Complexo do Alemão e da Penha.
A camuflagem dos traficantes, uma parte dos quais ficando nas comunidades pacificadas, uma outra continuando gerenciar as atividades criminosas fora deles, pode gerar uma aparente ‘paz’ imposta pelas UPP’s, pode-se ‘baixar a guarda’. O risco maior é que escondendo as armas e melhorando na guerrilha (como nos últimos casos no Alemão), os bandidos podem mudar o aspecto do crime, de uma forma mais ‘mafiosa’, mais difícil em combater, como pode se encontrar no caso das máfias italianas e nas outras máfias transnacionais. Uma nova criminalidade, que para ser enfrentada tem que ser muito mais investigada, analisada, estudada, com muito menos militares nas ruas, que só melhoram a superfície do problema, mas nunca vai resolver os problemas em profundidade. Mas a pergunta é, se os objetivos das UPP’s, como declarado pelas próprias autoridades, é evitar enfrentamentos armados para ter uma presença ‘normal’ de tráfico nas favelas, estas autoridades têm vontade de resolver as questões criminais, ou somente jogar a sujeira em baixo do tapete evitando os confrontos?
As imagens ‘mafiosas’ do Rio
Tenho três imagens que não consigo apagar da minha mente. Cada vez que estudo as políticas de segurança do Rio de Janeiro, sobretudo aquelas usadas na estratégia das UPP’s, essas imagens voltam, para me guiar na análise, me lembrando de utilizar, na interpretaçao das perspectivas da pacificação, aquelas estruturas mentais, que construí nos meus anos de trabalho como repórter policial na análise das trajetórias da máfia italiana. A primeira imagem é aquela de uma menina, de mais ou menos 15 anos, que encontrei no teleférico do Complexo do Alemão. Fui na comunidade onde ela mora para fazer algumas entrevistas. Quando estávamos sozinhos no bonde perto da estação, eu perguntei para ela sua impressão sobre as UPP’s. A menina respondeu “É Maquiagem, nada mudou, estão ainda todos aqui”. Uma resposta que obviamente não me surpreendeu, pois tantas vezes ouvi repetir essas palavras ao longo da minha pesquisa. Mas logo depois chegou a imagem que me iluminou. Estávamos quase chegando e as palavras da menina aceleraram. Me falou, me olhando direto nos olhos, para tomar cuidado, que provavelmente, qualquer um já sabia que eu estava lá e que poderia estar me controlando. “Aqui é perigoso”. Foi naquele momento que abriram-se as portas e a partir dali, nunca mais avistei os olhos dela. Saindo juntos das escadarias, a menina estava preocupada: “Não quero ser vista falando com você, podem pensar que eu estou te contando coisas, e depois vem me buscar. Tudo é controlado aqui”. Refleti, quantas vezes eu obtive informações para meu trabalho dessa forma: poucas palavras e faladas com medo. Normal nos lugares de máfia. A segunda imagem é aquela de um jovem da Mangueira. Fui lá para fazer entrevistas e decidi subir o morro e tentar fazer o mais dentro possível da comunidade. Subi. Cheguei até um ponto onde encontrei um jovem, mais ou menos de 20 anos e perguntei para ele se gostaria de me falar do que pensa sobre as UPP’s. O rosto dele mudou de aspecto ao me ouvir e começou a olhar tudo ao entorno. “Você não tem que perguntar estas coisas por aqui” falou “é perigoso. Tu pode perguntar para quem tem 50 anos de Mangueira, mas para nós jovens é diferente, temos que viver aqui, criar os nossos filhos, não pergunte isso”. E depois disse, com a voz mais leve, que me deu a entender que era melhor que eu fosse embora “Não é que com as UPP’s desapareceu o crime ou os bandidos, só as armas, mas tudo é igual”. O medo do jovem em falar comigo, me convenceu em deixá-lo. Logo, compreendi o que o jovem havia falado, quando ao descer o morro encontrei dois jovens com expressão ameaçadora, olhando para mim, e me indicando com ‘carinho’ a saída. Fui embora com amargura. A terceira imagem é aquela de um morador de uma comunidade pacificada, encontrado à margem de um debate. Para compreender as dinâmicas criminais do Rio, perguntei para ele, porque em todas as entrevistas que fiz, obtive as mesmas impressões, ou seja, que os jovens não falam sobre as UPP’s por medo e os adultos afirmam que nada mudou, além dos tiroteios e dos homicídios que diminuíram. O morador respondeu “Nos morros ficam muitos daqueles que antes eram do tráfico, e que agora andam vendendo droga, todo o mundo sabe disso. Os ´donos´ fugiram, e agora as favelas não pacificadas gerenciam o tráfico de drogas naquelas comunidades pacificadas. Se um morador dá problemas para o tráfico, este morador pode ser levado para uma favela não pacificada onde tem o ´dono´, e ai, tudo é igual. O controle dos marginais é menor, mas só nas comunidades pacificadas”.
As UPP’s sao úteis contra o poder paralelo com ‘aspecto mafioso’?
Ao juntar as três imagens e as várias entrevistas percebi que tem um grande risco ‘mafioso’ no Rio de Janeiro. E só pode piorar, caso a política das UPP’s não favoreça também uma atividade de investigação contra cada tipo de grupo criminal, sobretudo o fenômeno enormemente inquietante da milícia, embora das atividades ja envolvidas. Da forma que são projetadas, sem fontalecer os inqueridos, as UPP’s podem ‘ajudar’ o tráfico a mudar de forma e a milícia a tomar mais poder.
O que quero destacar é que acobertar o tráfico e apenas retirar os bandidos armados das comunidades (por melhor que pareça), não é a melhor solução. Ou pelo menos não deveria ser a única. Poderia ser até uma possibilidade ruim, no caso do conceito de UPP não ser reforçado com ações de investigação preventiva, que enfrente o possível crescimento de um poder paralelo, mais organizado e agora camuflado.
Um poder criminal forte, mas pouco visível e, por isso, menos preocupante para as populações de trabalhadores, menos presente na imprensa. Isso, obviamente somente naquelas comunidades onde tem as UPP’s. Enquanto continuem em crescer no poder naqueles lugares onde ainda tem controle do teritorio e onde vão controlar tambem as comunidades pacificadas. Como no exemplo dos municipio da Baixada Fluminense.
O tráfico no Rio foi, até a chegada das Upp’s, uma atividade com caraterísticas criminais de violência, de ocupação armada, de um território abandonado pelo poder público, simples e quase banal de analisar: um crime-negócio. Mas agora parece pronto para virar uma organização empresarial, mais complicada para compreender e enfrentar. Quando o traficante não for mais aquele que aparece como tal, quando perder o controle do território, será camuflado e bem escondido. E, não mas perpendicular e conectato, poderia tomar a forma de anti-Estado, poder paralelo, capaz de se colocar em alternativa ao próprio Estado. Assim como é hoje, e sempre foi na Itália, onde a máfia está presente em cada lugar do país, mas com a diferença de ações, muito mais econômicas em condicionar os negócios e legais no norte do país, mas presente em controle do território, nas áreas do sul. Condicionamento total que sempre foi provado nas investigações da Itália dos últimos anos, e que sempre teve resultados bons quando foi enfrentando com investigaçoes, com análises dos movimentos econômicos, e com apreenções de capitais acumulados ilegalmente. Nunca com a ocupação militar ou policial de um território. Isso sobretudo porque, na Itália, os interesses criminais mudaram ao longo das últimas duas décadas.
Pelas organizações italianas mais poderosas, capazes de oferecer uma oferta de ‘serviços’ maiores, a droga é só o primeiro passo. Tanto quanto a cobrança de ‘extorsões’ por parte de comerciantes, industriais e outras categorias de atividades econômicas. Somente são ferramentas de estratégia econômica para gerar o capital a ser reinvestido em numerosas atividades econômicas aparentemente ‘limpas’. E se isso for acontecer no Rio também? Se a presença dos criminosos nas comunidades com UPP for mais invisível, mesmo mantendo alta a tensão dos moradores, e o medo deles, caso o tráfico seja gerenciado fora das favelas pacificadas, de forma hierárquica e utilizando grupos de ex-militares para fazer ações de guerrilha contra as forças públicas, tudo ficará mais complexo. Pior seria, no caso que tráfico iria juntar-se à milícia, para ser parte de uma organização empresarial, especializada em diferenciar as ações ilegais, sempre mais ativa em superar a polícia. O Rio chegará próximo de um ponto de ‘normalização do tráfico’ nas comunidade com UPP, como esperado pelas autoridade do Estado hoje, mas em chave mafiosa.
As novas inquietantes dinamicas criminais do Rio
Esta perspectiva da possibilidade de unir o tráfico e a milícia em uma única organização, mais poderosa e organizada, ou de ver o uso de pequenos grupos armados de guerrilha, nao são hipóteses possíveis ou prováveis. Já é realidade. Em primero lugar, é testemunha disso o caso do miliciano Toni Ângelo de Souza Aguiar. Na matéria do Jornal Oglobo do dia 20 de abril, são evidentes todos os riscos desta ‘metodologia criminosa’. O miliciano, segundo a matéria do jornal e as investigações, fez acordos com traficantes, numa área que inclui Campo Grande, Inhoaíba, Santíssimo, Realengo, Bangu, Padre Miguel e Cosmos, para deixar o espaço aos traficantes poderem vender droga pagando um percentual aos milicianos. E, assim, Toni Ângelo pode ditar, em paz, as regras e o cobrar de “taxas de segurança” para vans, ágio na venda de botijões de gás, agiotagem, “gatonet” e venda de filmes e produtos piratas. Toni, segundo investigações, também atuaria na exploração de casas de prostituição e produção de filmes pornográficos. Todos os interesses criminais, estes que normalmente são a alma dos negócios dos mafiosos na Itália do Sul, sobretudo na área de Nápoles e da Campania, onde a ‘camorra’ controla seja o trafico seja todos os serviços. Outra caraterística muito mafiosa da milícia é aquela também em destaque no artigo: a estratégia de ocultar as vítimas. Na Itália isto chama-se ‘Lupara bianca’ e é um negocio típico da máfia calabresa a ‘Ndrangheta’. Isso evita o aumento do número de homicídios na região. E sobretudo mantém a população aterrorizada e longe das mídias. O silêncio é sempre a seiva vital da máfia. Temos assim, nesse caso do Toni Angel e da zona oeste, resumidas todas as imagens e todos os pontos de análise vistas até agora.
Mas como as novas estratégias criminais entram nas comunidades pacificadas, em risco de poder virar regra para as favelas e a cidade do Rio em geral? Uma novidade é destacada num relatório de inteligência preparado por forças de segurança do Estado para explicar ações do tráfico na Maré, e nos complexos do Alemão e da Penha, além de outras comunidades já dominadas pelo tráfico. Em 15 páginas, o documento publicado também do Jornal “O Globo”, informa que os bandidos passaram a adotar táticas de guerrilha, com ações que combinam ocultação e extrema mobilidade de grupos que atuam em frações reduzidas e fortemente armadas. Demonstração disso seria o que aconteceu no Alemão antes da corrida “Desafio da Paz”, na qual os bandidos atiraram contra a UPP da Vila Cruzeiro. Para esta ação, os bandidos vieram de fora, em número reduzido, e teriam recebido apoio logístico local. Para a polícia, os bandidos teriam saído de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, onde moradores e ativistas denunciam que se implantou o novo quartel geral dos chefões do comando depois da tomada do Alemão. Todas as provas e evidências daquela mudança já eram percebidas. Mas uma vez é o risco miliciano a piorar as coisas. Segundo o documento da polícia, grupos formados por ex-militares das Forças Armadas e cooptados pelo tráfico controlariam o conjunto de favelas da Maré e estariam presentes também em outras áreas pacificadas, como Mangueira, Macacos, Jacarezinho, Rocinha e as comunidades do Alemão e da Penha.
Nos dias da corrida e nos dias depois da morte de um traficante, muitas vezes o comércio ficou fechado, alguns comerciantes e moradores contaram que os bandidos os ameaçaram de fechar o comércio. Além disso, forçando os comerciantes na cobrança de um ‘ágio’ sobre as vendas. Um caso muito grave que testemunha o controle que os criminosos ainda têm nos territórios. E assim as perguntas nascem de repente. É bom transmitir a sensação de ter ‘eliminado o crime’ nas comunidades pacificadas, só porque fica invisível e desarmado? Mesmo estando as quadrilhas fugidas das comunidades sempre prontas a se armar? Achar que as UPP’s são o suficiente é um risco enorme, sobretudo caso não se compreenda que as UPP´s para serem eficientes e consideradas a melhor das soluções teriam que ser a menor parte das políticas de segurança pública, e não a única.