Hip hop pernambucano: panorama da cena que revolucionou a cultura em Recife

Grafiteira Fany Lima em ação. Objetivo é subir cada vez mais. FOTO: Ingrid Veloso

Após consolidada, um balanço da cena de hip hop em Pernambuco evidencia que a representatividade da produção tem reconhecimento nacional, houve avanços em certos aspectos, como na diminuição do injustificável machismo, e integrantes da cena vêm se articulando para alcançar reconhecimento da favela como berço de arte que necessita de investimentos, buscando e participando da construção de editais públicos.

O hip-hop em Pernambuco possui representantes de todos os elementos que compõem a cultura: dança de rua, o break; mestres de cerimônias, MCs; criadores de bases musicais e outras peripécias sonoras, DJs; além de grafiteiras e grafiteiros.

Mas para entender como se construiu essa cena, precisamos voltar um pouco, recuando meio século, para quando o hip hop é um movimento de meados da década de 1970 nas periferias dos Estados Unidos, logo depois conquistando todos os continentes até se tornar uma cultura mundial de territórios periféricos, ferramenta de luta e transformação, evidenciando a insatisfação e insubordinação através da arte.

A cultura hip hop traz em sua essência a luta antirracista e o combate à violação de direitos humanos. Na década de 1980, chegou ao Brasil com encontros de grupos no Largo de São Bento, em São Paulo, o que possibilitou o surgimento de diversos artistas e grupos. O lema do hip-hop é paz, amor, união e diversão.

Um pioneiro de Pernambuco em São Paulo

Antes de mais nada, jamais se pode esquecer que o dançarino Nelson Triunfo, um dos precursores da cultura hip hop no Brasil, é do sertão pernambucano. E que ele se destacou dançando no centro da capital paulista com o gingado trazido da terra natal. Em Pernambuco, elementos do hip hop começaram a se manifestar em 1983.

Nelson Triunfo havia se mudado de lá uma década antes. “Em Nova Iorque começou no Bronx, em 1973, e eu estava saindo de Pernambuco em 1972. Formei o primeiro grupo de soul da Bahia, em Paulo Afonso. Depois Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. De alguma forma, fui um dos iniciantes na construção desses processos”.

Segundo Triunfo, “a evolução que aconteceu nesses cinquenta anos foi muito grande, porque os passos evoluíram, as produções de música, os próprios trabalhos sociais, no Brasil e em outros lugares”. Ele avalia que em cinquenta anos a cultura hip hop está consolidada.

Porém, Nelsão anseia ainda que ela seja cada vez mais vivenciada dentro da escola, “mostrando o que existe em toda periferia, e a importância de ler um livro, de não decorar, de aprender de verdade”.

Há batalhas de rimas e por investimentos

No rap (sigla de ritmo e poesia, em português), Pajé IB constrói sua carreira no bairro do Ibura, zona sul do Recife. “Eu escutei rap a primeira vez com seis ou sete anos, na virada dos anos 2000, através do rap cristão de Dj Alpiste. Me identifiquei porque falava de realidades de sofrimento que outros estilos musicais não passavam. Depois escutei Racionais, que abriu minha mente para o rap real, os problemas das comunidades”.

Para Pajé IB, poucos sobrevivem do rap, mas é preciso incentivar o sonho. FOTO: Arquivo pessoal

Pajé IB começou a rimar e compor com 16 anos e “quando comecei a encontrar os parceiros que também gostavam, a gente começou a improvisar brincando. Com o tempo, fui levando a sério. Daí o Rafael Couto, do Ibura Bagdá, me viu rimando e me chamou pra cantarmos”. A dupla começou em 2014.

Depois de uma década, continua sendo difícil garantir o sustento com arte em Pernambuco. “Poucos sobrevivem do rap, e digo até da cultura hip-hop. Não fui favorecido pelo sistema em nenhum momento. Tem que furar algumas bolhas, não tem investimento do nosso estado. Aos poucos, o sistema mata nossos sonhos, e o hip-hop mostra ao moleque que ainda nem sabe o que é a cultura, que é possível sonhar. A mudança é a cultura, sem cultura a gente não vive”, desabafa Pajé IB.

Batalha da Escadaria, patrimônio do Recife

A Batalha da Escadaria é o evento mais popular de rap em Recife. Desde 2008, são realizados duelos de improvisadores de Pernambuco e de outros estados, com vencedor escolhido pelo público. As inscrições acontecem meia hora antes de cada batalha.

No último dia 23 de maio, a Batalha da Escadaria conquistou o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Recife, concedido por unanimidade na Câmara Municipal.

Batalha da Escadaria agora é Patrimônio Cultural Imaterial do Recife. FOTO: Ferrer

Luiz Carlos Ferrer (Duh), idealizador e organizador da Batalha da Escadaria, diz que “foi muito importante esse reconhecimento. Espero também que os órgãos públicos deem mais atenção a todo o movimento hip-hop”.

Sobre a criação da Batalha, Duh conta que “que eu tinha que fazer algo para o meu estado se tornar visível, aí eu criei aqui na esquina da rua do Hospício com a avenida Conde da Boa Vista, local de luta: foi um DCE, é onde se encontram punks, roqueiros, bikers, skatistas, a galera do reggae”.

Para Dj, articulações poderiam ser melhores

Quanto à prática da discotecagem, Dj Beto é um dos nomes do hip-hop pernambucano. Morador do Ibura, zona sul do Recife, ele conta que seu caminho teve início em 1982, e seus maiores incentivos vieram da família, pai e irmãos. Hoje ele atua em algumas batalhas de dança, com grupos de rap e no seu projeto solo. Para o músico, não houve valorização da profissão de Dj no estado. E as articulações poderiam ser muito melhores.

Para Dj Beto, não houve valorização da cena musical no estado. FOTO: Arquivo Pessoal

Outro DJ carimbado em Pernambuco, Deejay Novato, é mais otimista. Ele começou no hip hop nos anos 2000 com o Êxito de Rua, mas era contemporâneo do Mangue Beat com a banda Via Sat. Ele avalia que a evolução artístico-cultural pode ser notada pela crescente quantidade de coletivos e em pautas que viram políticas públicas.

“Foi um processo no Brasil, em que o movimento hip hop se envolveu com elementos culturais e sociopolíticos. Foi tão intenso que virou política pública na cidade. Você vê o Colorindo Recife, com várias pessoas da Rede de Resistência Solidária”, aponta Novato.

A Rede é um coletivo surgido no início do movimento hip hop em Recife, reunindo artistas de todos os elementos do hip-hop e profissionais de outras áreas, como arquitetura, teatro e saúde. Foi a Rede de Resistência Solidária que criou o termo “Mutirão de Graffiti”.

Segundo Novato, “há muito vem acontecendo oficinas de DJ, como as oferecidas por DJ Big recentemente, apenas para mulheres. A gente deu oficina pra galera em situação de cárcere. Assim você vê o movimento reverberando”.

Imagens em muros e fachadas, o grafite

O grafite construiu uma cena vasta em Recife e Região Metropolitana, com artistas e grupos que se reconhecem e dialogam na busca de reconhecimento e políticas públicas. Desde 2020, são organizadas comissões para pleitear a participação na construção dos editais de arte urbana.

Com insistentes solicitações, o edital do Programa Colorindo o Recife foi editado com as demandas exigidas pela cena do grafite. Itens como paridade de gênero, diminuição da burocracia, presença de grafiteiros e grafiteiras nas equipes de curadoria e ordem de chamamento pré-definida foram, alterações pensadas para tornar o edital mais democrático e transparente.

Hoje os selecionados são escolhidos através de sorteio, gerando uma lista de chamada. Ela possibilita um número maior de artistas contratados, que só retornam ao início da lista quando todos tiverem sido chamados.

Mulheres colorindo muros e fachadas

Naara, grafiteira, mãe e escritora de rua natural de Recife, começou no hip-hop em meados de 2011. Suas personagens e letras estão espalhadas pelas ruas com cores e traços marcantes. Ela é referência em fazer personagens gigantes com o uso de extensor de 10 metros ou mais nas paredes.

Envolvida em diversos projetos, Naara é uma das organizadoras do Encontro Cores Femininas, evento internacional de hip-hop para mulheres em Pernambuco, visando fortalecer o empoderamento das artistas periféricas, atendendo também mulheres em espaços de cárceres e situações de risco.

“Antes de 2011, eu já fazia parte do movimento da pixação pra conhecer a galera, dar rolê, simpatizar. Depois comecei a familiarizar com o grafite, fazia alguns eventos porque sou técnica em eventos, e fui unindo uma coisa à outra”, conta Naara.

Há quem desacredite que Naara faz personagens gigantes. FOTO: Arquivo pessoal

Segundo ela, há dificuldades para as mulheres se inserirem no hip-hop, sendo sempre colocadas à prova. “Em muitas situações escutei, e continuo escutando, questionamentos sobre as minhas personagens, que são muito grandes, se realmente sou eu que faço daquele tamanho, principalmente por ser em lugar perigoso, por ser na madrugada. É muito difícil pensarem inicialmente que é uma mulher que faz isso.”

Em eventos, a artista presenciou paredes menores, menos visíveis para mulheres, além de número desproporcional de homens selecionados. “Têm aqueles caras que, mesmo me considerando, por talvez eu ter um nome na cena, acabam desmerecendo, subestimando ou até vulgarizando outras mulheres recém-chegadas”. Contudo, ela acredita que esse contexto vem se modificando.

Grafiteira vê avanço feminino

Fany Lima é grafiteira e veio de São Paulo para estudar Artes Visuais no Recife. Há vários anos, compõe a cena. Sua inspiração vem do cotidiano nos espaços da cidade. “Meu processo de criação está relacionado às minhas vivências, seja no hip-hop, no grafite, nas artes visuais, na arte-educação, no terreiro, na rua”.

Ela conheceu a cultura no Núcleo de Hip-Hop Zumaluma em 11 de setembro de 2011, na sua quebrada de origem, Jardim Santa Tereza, em Embu das Artes, Região Metropolitana de São Paulo. É um “legado que sempre vou levar e mencionar onde estiver”, lembra a artista, que começou a grafitar em 2013.

Para Fany Lima, cenário avançou com “muito pé na porta”. FOTO: Eudes Silva

Quanto ao machismo, Fany Lima acredita que “embora seja um movimento de resistência, o hip-hop não está isento dos dilemas que vivemos socialmente. Muitas mulheres enfrentam os desafios de seguir com a carreira artística conciliando a maternidade. Pelas falas e experiências de quem veio antes, acredito que o cenário teve avanços expressivos com mudanças de consciência e muito pé na porta”.

Grafitar significa conversar com as pessoas

Fagner Cleiton, grafiteiro em Recife, assina como Luther. O nome é inspirado nas ideias do líder negro americano Martin Luther King. O artista vive a cultura hip-hop há mais de 22 anos, iniciado pelo rap por um colega de infância, que emprestou uma fita com Racionais MCs.

Para ele, o hip-hop é um movimento transformador, forte e marcante, que vem atravessando e unindo gerações, com imensa movimentação cultural, sociabilização, entretenimento e produção artística, responsável por transformações sociais dentro e fora das periferias.

Luther, organizador da Batalha da Escadaria. FOTO: @veio_art

“Essa cultura nunca parou, vive uma caminhada constante e insistente na mudança das estruturas preconceituosas da sociedade. No Brasil, as pessoas, em sua maioria, são pretas, mas têm seus direitos básicos violados”, diz Luther.

Apesar das trajetórias individuais, ele acredita em uma revolução coletiva, “no poder transformador da educação, dos livros, na participação do povo, pois só o povo sabe das suas principais necessidades”.

Luther defende a ideia de que o grafite é arte, assim como a pixação, o que muda é a estética. “A rua é como se fosse uma válvula de escape, onde posso desabafar, conversar com as paredes”, conclui.

Cenário local, regional e nacional

Os grafiteiros Luther e Naara organizam o Point Bomb Recife (PBR), encontro que surgiu em 2015 reunindo pichadores e grafiteiros de Pernambuco para troca de ideias, assinatura de folhinhas, sorteio de brindes, escambo e vivências em grupo.

O encontro se estende para além da Região Metropolitana do Recife, contando com movimentos sociais, artistas de rua, professores, profissionais da saúde e simpatizantes. O Point Bomb Recife teve início no Parque 13 de Maio, passou a acontecer na Praça do Arsenal e hoje é realizado na beira da maré, no Paço Alfândega, centro do Recife.

Na relação com o cenário nacional, o hip-hop vem buscando políticas públicas de fortalecimento à cena artística no ano do cinquentenário, visando oficializar o reconhecimento da cultura e buscar investimentos. Para isso, foram criados Grupos de Trabalho (GTs) estaduais e um nacional.

Levi Costa, produtor cultural e arte-educador, conhecido como b. boy Chitos, é um dos membros do GT Pernambuco e do GT nacional. Ele conta que o foco está sendo a construção de um inventário em cada estado, em que serão evidenciadas as lutas e reivindicações, como as da cultura hip-hop pernambucana.

O b. boy Chitos é idealizador e produtor da Step Evolution Crew, único grupo de dança do estado que, além de batalhas, participa de outras atividades, desde aquelas ligadas a editais de fomento, até carnaval.

Junior Cardeal

@juniorgrama

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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