Vassalos do Futuro – Um Conto Póstumo

          Era uma disputa entre a fome e a ganância. De um lado os homens morriam pela posse do dinheiro, posse da auto-estima; suas fomes eram apenas por gráficos e porcentagens a fazer valer o valor de seus iptu’s de seis dígitos. Do outro a fome simbolizava o carecer, a desnutrição tanto do corpo quanto da mente. Faltava educação.

          Debochavam-lhes da linguagem precária, do horrível português cujo esforço convém lembrar, nunca pôde alcançá-los, pois se possível o trágico sistema sofreria a rebeldia dos ultrajantes armados à base da foice. Eles teriam voz, teriam espaço. Dito isto, trajando ternos azulados, alinhados, faziam-se do povo ⸺ muito mal disfarçados ⸺ e sorriam ao dizer nas campanhas: “Vá ao monte colher as frutas mais maduras! Vá! Suba, trabalhador! Suba! É direito teu a sobrevivência mínima.”, depois pisavam sádicos nos pés daqueles que não tinham carros para dirigir ao alto da colina. Preferiram as armas, trilhões de dólares! Esqueceram as ciências, esqueceram os caminhoneiros, esqueceram os doutores, enfermeiros, os faxineiros, os responsáveis verdadeiros pelo bem de uma cidade. Lembraram já tarde demais, no que aos poucos morriam em súbito, os idosos, os jovens, os povos. O vírus viajou o planeta, e desde que começou, deixou angústias e incertezas.

          Está gelado aqui. Acordei-me há cerca de dois dias, mas julgo que não me recompus ainda. O medo e os calafrios sobrevivem comigo, não sei onde estou. Permaneço de cócoras, confuso, e percebo estar distante daquele leito de hospital. Respiro profundamente contando até sessenta e nada parece acontecer, o tempo não parece fazer sentido algum.

          Há vozes, mas parecem pensamentos altos em demasia. Não sei quem são, e dizem para manter a calma e não dar razão ao pânico, o resultado do teste virá em breve. Essa informação nova de alguma maneira me deixa nervoso, e o nervosismo me rouba o ar. Meu pulmão parece carregado, mas não entendo, nunca fumei. Diferente. Pareço tão liberto e pressionado ao mesmo tempo, reluto à sede, à fome e ao desejo sexual.

          O erotismo parece aflorar mais que qualquer outra coisa, tiraram-me o véu. É como ter a cabeça aberta e os pensamentos expostos a deus-dará. Se alguém me descobrir eu viro chacota, só que tudo parece tão intenso, então pouco importa. Já nem sei dominar as pernas para fugir. Eu poderia dizer que ao menos o nariz funciona, mas sem muitos méritos. Não é o nariz que descobre os cheiros, é o cérebro, e não sou capaz de definir a direção disto, parece ser fedor de açougue. Açougue humano. Creio saber onde estou, que sonho esquisito!

          Mantenha a calma, escuto novamente, e desta vez a frase sai de mim sem que eu pense. Para meu espanto, percebo que lá estou, completamente nu ao lado de tantos outros. E percebo que o corpo jogado não é minha posse. É uma imagem forte, o corpo sem vida incomoda o costume por vitalidade. Estão me levando a outro lugar, e claramente ninguém escutaria um mudo como eu, que dirá quando morto. Ou eu acordo ou mais um passo e me desespero. Mais um passo e…

          Sou puxado a outro lugar. Importunavelmente não é um sonho, é um dia triste, diferenciado, donde um caixão me serve de cama e o primo Bruno ajeita a manga da camiseta social preta em frente ao espelho. Posso ler seus pensamentos, ele não me vê. Ele sequer acredita em como aconteceu, não digeriu ainda. Não houve despedida decente, o turbilhão de notícias ameaçava-nos, nos impomos ao isolamento social, mas eu debochei o inimigo invisível julgando-me um herói imune. Como aconteceu? Me explica… Eu estava bem, confiante em mudar de vida, a quarentena seria uma oportunidade de auto-reflexão, de repente estava no hospital, me examinaram e chegaram à crise de rinite como resposta. Mandaram retornar para casa, desdenharam da mancha preta em meu pulmão, receitaram antigripal e isolamento. Testaram-me ao coronavírus, mas a resposta não saiu a tempo.

          Tento não criar pânico ante as memórias, é impossível voltar à vida, e nesta forma em que me encontro suspeito da insignificância das amarguras que vivi durante toda a vida. Tudo é pequeno, a não ser que enxerguemos como grande; caberia ao bom senso definir as boas coisas como grandes, e as ruins como pequenas. Recordo algum semblante familiar, talvez seja minha mãe mandando-me luz e sugerindo a perseverança; no momento certo eu sei que hei de encontrá-la. Rezo para um Deus sem rosto, descubro o quão errôneo eram as iras dos quais afirmavam vermos Deus após a morte; agora ele parece ainda mais distante, mas eu sei que ele está bem à frente, sempre esteve. E cego às sutilezas, jamais interpretei Deus no chiado silente esboçado pelas ondas marítimas ao ecoar das conchas.

          Num indefinido lapso de tempo encontro-me no carona de um carro. Desconheço o motorista, mas a mulher no banco de trás é Marta. Diria que ela está vivendo um luto diferente. A mão na barriga um tanto avantajada, uma pasta de exames com a ultrassom frustrada: diagnóstico de gravidez não detectada. Ela não parece aceitar. O motorista intervém um auxílio inútil, poucas vezes alguém consegue dizer palavras capazes num momento de tristeza.

           A vida no mundo está cada vez mais complicada. Tanta desgraça inesperada, tanto luto. Passam por mim alguns feixes luminosos indo em disparada, às vezes eu mesmo disparo. Quanto mais as pessoas se esbarram desnecessariamente, mais responsabilidade jogam para si a despeito do novo coronavírus. Fiquem em casa, respeitem e não saiam! Eles não me escutam.

          Mesmo morto não me livro do transporte público. Mas que inferno é esse? O metrô não está de todo vazio, mas a suposta quarentena e a maneira como o vírus assassino se propaga, silenciosamente: encolheu um pouco a comunicação das pessoas. Um violinista executa uma canção desconhecida e isso me lembra uma cena o filme Titanic, quando os músicos se reúnem para tocar enquanto o navio afunda. Ninguém moveu um dedo para tirar sequer um único trocado da bolsa, o violinista saiu triste, culpando-se, culpando o coronavírus, culpando a incapacidade de apreciação dos espectadores. Morrerá de fome, isso se não morrer doente e infectando a família.

          É engraçado como em Copacabana o dia parece normal. Idosos transeuntes com sacolas de mercado; em cada quadra há pelo menos dois comércios abertos, em toda esquina há uma farmácia, banca de jornal. Até a floricultura funciona normalmente. Não confundo os acentos, é fato que são pessoas vivas! Mas não parecem se importar. Por favor, meus caros, sumam! Um velho mascarado parece me notar, benze-se diante de um fantasma, educadamente desejando-me luz. És o próximo a vir para o lado de cá? Se acalme, o lado de cá por incrível que pareça nem é tão longe assim. Só aparenta mais leveza no ponto de vista do corpo, pareço ter perdido muitas quilogramas sem a carcaça morta; de resto o volante da vida permanece sendo guiado ora pela consciência, ora pela angústia. O inferno é aqui mesmo, próximo. Depois de morto a gente morre novamente ou renasce? Renascer deve ser doloroso, pois imagina, voltar à este dilema em que o trágico convive com a necessidade, onde o medo e o mundo pouco se importam.

          Logo estou no alto da favela. Nina, ainda tão bela? Por que escuta estes fantasmas que te assombram? São muitos, e no além-mar falta-lhe a água para higienizar as mãos, e por aí os termos preventivos se esvaem. Como manter a dignidade se o teu coração palpita à favela, e a favela reside abandonada como a mais baixa linhagem da suposta hierarquia social? Estão abandonados, querida. O prefeito não lhes ouve! A empresa de água dirá ao jornal que enviará caminhão pipa e ficará por isso mesmo, é no tempo deles. Desliga esta câmera e ajuda Francisco a tentar andar sem apoio, ele está grande e precisa aprender logo. Como apegamos-nos aos beijos carnais, aos toques de dedos entrelaçados. Menina, Nina… Sou intocável, mas posso sentir. Eu sei que tu gostarias de ir ao meu velório se houvesse como, não me aborreço. Fique em casa, não exponha Francisco nem a tua mãe. Fique em casa, fique em casa, fique em casa.

          Na televisão que tua mãe assiste, o jornalista faz sugestões patéticas de sobrevivência: jogue jogos em família, assista à séries, cozinhem! Falta o prato de comer de ontem, besta! Escassez, pobreza, carência. Quantas pessoas o senhor acha que assistem este jornal, e realmente possuem poder aquisitivo de estar gozando aos montes no período sem trabalho? Se o prato de comida de amanhã depende de hoje, e hoje a favela e o mundo escondem-se em casa, os escravos do futuro apenas respiram. Desliga esta câmera e estuda um artigo sobre a porcentagem de pobreza, acione uma bomba nesta bolha maldita de material grosseiro em volta da tua pauta. Ô miserabilidade, ô fundo do poço! Abaixo de ti deve haver o raciocínio humano mais pobre que o mendigo da esquina, e vem dos homens bem dotados, sabidos e eruditos, que de tão letrados escorrem as palavras sem valia daqueles que estão abaixo. Pobreza maior é plantar sementes em vasos sem terra. Falta terra, homem! Acorda! Sem dividir, nada cresce igualmente.

          Não há ninguém além de Bruno em meu velório. O coveiro parece apressado, um fotógrafo faz registros escondido num jazigo. Não sei o que farei depois daqui, mas pedirei pelo mundo. Eles parecem mais vulneráveis que eu.