Uma defesa da arte-educação: a história de Victor Meirelles

Na favela da Coréia, localizada no bairro de Senador Camará, na cidade do Rio de Janeiro, cresceu uma figura empenhada em transformar o mundo e as pessoas por meio da arte. Ator, palestrante, jornalista e ativista cultural, levou seu trabalho por mais de 500 cidades, 35 estados e 7 países. Definindo-se como arte-educador, Victor Meirelles revela uma das suas principais dedicações: a defesa da arte como meio para mudança pessoal.

Retornando em 2019 ao Brasil após uma temporada na Europa para divulgar o filme “Quando Lembro de Chico”, Victor conversou com a ANF sobre sua trajetória. “Eu digo que eu sou um garoto dentro das artes cênicas, dentro do teatro. Eu completei 10 anos de carreira profissional em 2018. Então pra mim, 10 anos é uma criança!”. Apesar do “pouco tempo”, o ator já coleciona trabalhos notáveis em sua história profissional: tornou-se um dos primeiros a interpretar uma peça brasileira em língua portuguesa na Broadway (Nova York, EUA) e conquistou o sonho de uma carreira internacional. No mês de Janeiro, em Copacabana, estreou a peça “A Morte é uma Piada 2” ao lado de Renato Prieco.

O artista revela que não diferencia um espetáculo no subúrbio carioca de uma apresentação internacional. “Eu vejo um trabalho como qualquer outro trabalho. Eu não meço o fato de estar fazendo um trabalho numa escola brasileira ou no Teatro de Zurique. É o meu trabalho e é um público.”

Questionado sobre a emoção de estar estreando mais uma vez, Victor afirma que toda apresentação é uma ocasião única. “É claro que todo apresentar teatral é um momento especial, porque é como se fosse uma estreia. O teatro é orgânico e vive.”

A vida pessoal 

Quanto às suas raízes, Victor Meirelles afirma que a favela influenciou diretamente a sua formação artística profissional. “Quando você tem uma infância dentro de uma comunidade carente, dentro de uma favela, de um subúrbio, a gente acaba tendo que criar algumas estratégias para sobreviver. E enquanto criança, a gente quer se divertir. Eu não tinha como ter uma mobilete, uma moto. Mas eu tinha uma bicicleta, que foi dada pelo vizinho, mas eu tinha vontade de ter uma mobilete. Então, eu sentava na bicicleta e acelerava como se estivesse numa moto e interpretava o motoqueiro, com som e tudo. Quando você tem vários momentos em que você tem que criar, é preciso colocar a fantasia a seu favor.”

Para o artista, a cooperação entre as pessoas da periferia foi um dos elementos essenciais para explorar seu talento. Como exemplo, seu primeiro contato com a arte deriva da proximidade com a casa vizinha. “O vizinho do lado tinha uma TV, e a televisão ficava de frente pra janela. Meu primeiro contato com a arte foi pela fresta da janela do vizinho, que tinha televisão, na época, preta e branca. E a janela era de madeira e tinha umas frestas que ficavam quebradas, então a gente via pelo buraquinho.”

“Eu digo que eu descobri aos nove anos que queria ser ator porque alguém me disse ‘isso aí que você faz é coisa de ator’”.

Os primeiros contatos com o teatro:

“Eu só fui conhecer o teatro quando eu fiz uma oficina numa escola que eu estudei. A gente tinha um trabalho pra falar sobre literatura, e daí a gente fez uma oficina de teatro com um texto. Ali foi o primeiro contato literal de como era realmente uma produção teatral. E o engraçado era que o meu personagem entrava em cena, abria uma porta e dizia: ‘O que houve? O que há de tão importante?’ e era morto. Ele voltava ao fim da peça, pra dizer que na realidade era tudo uma simulação. E foi nesse momento o meu primeiro contato com uma produção teatral. Antes, eu posso dizer que foi um contato autodidata, mais de osmose.”

Victor conta também a importância da sua família para que seguisse seu sonho e se tornasse um grande artista. “Minha mãe foi minha veraz incentivadora. Ela era uma pessoa analfabeta, que não chegou a passar da 2ª série, não sabia ler nem escrever e trabalhava como auxiliar de serviços gerais. Ela sempre nos disse que o único jeito de mudar nossa história, o único jeito de ter uma vida melhor era através da educação. A segunda incentivadora é a minha irmã Alessandra, que também é a pessoa que me criou. Como qualquer padrão familiar de comunidade, de periferia, acaba que minha mãe tinha que trabalhar, então minha irmã ficava com a gente”.

O preconceito:

“Aos 9 anos, uma professora me perguntou o que eu queria ser quando crescesse. Eu disse: ‘eu quero ser ator, professora’. E ela falou: ‘como, se você é preto, pobre e favelado? Não sabe nem ler ainda. Você vai ser ajudante de pedreiro, ajudante de mecânico.’ E realmente, eu fui ajudante de pedreiro, ajudante de mecânico, eu fui camelô, eu fui feirante, eu fui digitador de texto… Todas elas, claro, pra mim, frutos de personagens.”

                Comparando a época de seu crescimento a atualidade, Victor conclui que o preconceito ainda age fortemente, seja pela inexistência de papéis representativos ou ainda pela reprodução dos mesmos estigmas. O artista afirma que, muitas vezes, os personagens apresentados são sempre os mesmos, ajudando a afirmar estereótipos e preconceitos sociais e raciais na sociedade brasileira.

“Eu sofro violência ainda, não por ser cria de periferia, mas eu ainda sofro pela cor da pele. Por ser negro, eu sofro. E todo esse contexto que vai juntando. Mas isso de ser morador de periferia e pobre, eles não tem como perceber muito. E como eu trato isso?  Eu respiro, inspiro e penso que estou em busca de um resultado. Não revido com violência porque eu digo que a violência é uma pequena bola de neve. Que quando eu passo ela pra você, ela vai aumentando e vice-versa.”

O ator declara, então, que, devido a esses obstáculos, é preciso realizar maiores esforços. “A gente tem que estar bem mais preparado. Bem mais qualificado. A gente tem que estudar mais, exercitar mais. E dentro de qualquer carreira, é assim que tem que ser.”

A arte educação:

“Eu percebi que eu deveria fazer o que minha mãe fez comigo: transmitir a informação e mostrar que sim, é possível. Eu peguei a minha realidade. Porque todo mundo fala ‘o cara da favela vai ser traficante’. Mas é a imagem. A única referência de sucesso, de realização, de ápice de carreira é o tráfico. ‘Ah, mas pode ter acesso a tanta coisa’. É, mas naquele momento é o que está mais forte, gritante. Então, eu pensei: eu tenho que, de alguma forma, passar, transmitir isso [a arte e a educação]. E foi a partir daí que eu comecei a fazer as palestras nas escolas, palestras artísticas, oficinas.”

               Victor Meirelles se opõe à afirmação de que a arte o tirou da favela. Ele declara que a arte o levou para novas favelas e para novos lugares que ele nunca imaginou conhecer.

O artista defende o conceito de arte-educação. Para ele, a arte é um meio facilitador e o seu ensinamento estimula a reflexão e a capacidade crítica, dois elementos essenciais aos tempos contemporâneos. “A arte transforma porque ela facilita o indivíduo, ela toca, ela emociona”.

Ao fim da nossa conversa, Victor conclui o panorama pela sua história, analisando a importância da arte para tantas conquistas pessoais.

“A arte e a educação me mudaram e me levaram pra tudo isso. As portas, por mais esgueiradas e fechadas, elas se abrem, nem que seja numa frestinha. E como qualquer bom favelado, a gente passa em qualquer buraco.”