TROCANDO O DISCO

*Carlos Bruce Batista

Desde o número “0” do jornal A VOZ DA FAVELA viemos escrevendo sobre funk.

Escrevemos sobre o momento em que o funk restou reconhecido como cultura pelo Estado, sobre o episódio em que alguns MC´s foram indiciados pela polícia por cantarem suposta apologia ao crime, um pouco da trajetória do funk e por fim como surgiram os primeiros bailes black no Rio de Janeiro.

De lá pra cá o funk foi reconhecido através de lei estadual como movimento cultural de caráter popular, foi recepcionado nas favelas “pacificadas” e se tornou símbolo da “integração” do Governo Estadual com o povo favelado.

É, acho que está na hora de trocar o disco!

Dentre os vários assuntos que me vêm à cabeça, talvez o que me chame mais a atenção seja o entusiasmo da mídia comercial pelas UPP´s (Unidade de Polícia Pacificadora).

O Governo do Estado e a grande mídia vêm desenvolvendo uma enorme campanha publicitária pelo reconhecimento das UPP´s como a salvação das políticas de segurança pública para o Rio de Janeiro.

Invariavelmente lemos nos principais jornais cariocas notícias de enaltecimentos à invasão policial,  reiterando o caráter “pacificador” das tais UPP´s.

Porém a suposta pacificação nas comunidades invadidas pela polícia, na prática, parece não condizer com o que se anuncia incansavelmente nos jornais, revistas, rádios e televisão.

Muitos reclamavam, e com razão, das armas expostas pelos “terríveis” e “organizados” “traficantes” de drogas nas comunidades dominadas pelo “medo”.

Nas atuais comunidades “pacificadas”, onde tudo parece estar resolvido, seus moradores ainda são obrigados a conviver com estas mesmas armas na portas de suas casas, desta vez expostas pela polícia.

Nas atuais comunidades “pacificadas”, seus moradores são tratados como suspeitos e submetidos a todo tipo de arbitrariedade.

Apesar das dificuldades ao acesso dessas informações, pelo menos dois casos se fizeram conhecidos e noticiados pela grande mídia.

O primeiro se deu no Morro Santa Marta.

De acordo com o rapper Fiel, na madrugada do dia 21 de novembro do ano passado, enquanto ele realizava uma festa no bar de seu sogro, alguns policiais da UPP invadiram o local desligando o som e em seguida detendo-o e agredindo-o.

Ainda segundo Fiel o motivo teria sido a suposta quebra do limite de horário de funcionamento do som.

O segundo caso aconteceu na Cidade de Deus.

De acordo com o cineasta Rodrigo Falha, na noite de 15 de maio deste ano, na véspera de seu embarque para o festival de Cannes na França – onde esteve representando o filme 5xFavela –  teria sido humilhado por policiais da UPP, sendo obrigado a ficar em trajes íntimos perante outros moradores da comunidade.

Se não fosse a representatividade do rapper Fiel e do cineasta Rodrigo em suas comunidades, muito provavelmente essas notícias não teriam sido publicadas nos jornais e se perderiam – do momento da abordagem policial até a delegacia.

Numerosos casos como esses se repetem sem que tenhamos conhecimento. E são justamente nos morros “pacificados”, divulgados pela grande mídia como o retrato perfeito da paz, harmonia e tranqüilidade, que seus moradores veementemente têm seus direitos fundamentais negados.

Em sua matéria sobre a implantação da UPP no Santa Marta,  publicada no jornal A VOZ DA FAVELA nº 2, o jornalista Marcelo Salles chama a atenção para o toque de recolher imposto pela PM.

Segundo Salles, relatos de agressões e violações aos moradores também não demoraram a aparecer.  “A própria comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa registrou ao menos três casos, que incluíam revistas vexatórias, ameaça e agressão física”, completou o jornalista.

Recentemente no Jornal O Globo, em sua edição do dia 19 de setembro, foi publicado uma matéria sobre a realização de uma pesquisa etnográfica em dez comunidades controladas pela Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).

Como não poderia deixar de ser, foram verificados diversos relatos de arbitrariedades policiais.

No morro do Andaraí, por exemplo, a geógrafa Tatiana de Almeida Accioly disse ter ouvido queixas de comerciantes sobre o fim das festas e a queda na venda de bebidas.

Na favela do Batam, em Realengo, segundo a doutoranda em planejamento urbano Marianna Olinger, existe uma série de disputas de poder entre a UPP e associação de moradores. O fato curioso, para não dizer preocupante, fica por conta de que a própria associação de moradores do Batam é comandada por um PM do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), que proibiu a venda de bebidas alcoólicas a partir de determinado horário.

Já no morro do Borel, na Tijuca, a socióloga Monique Batista relatou que há queixas de violação da vida privada por parte dos policiais, que inclusive ditam até a altura do som dentro das casas.

Outros abusos – como o pedido de autorização para qualquer evento em espaço público ou reunião privada – também podem ser verificados nos morros supostamente “pacificados”.

Nesse direcionamento as favelas invadidas pela polícia encaram um modelo muito similar ao do Estado de Defesa e do Estado de Sítio, previstos respectivamente nos artigos 136 e 137 da nossa Constituição Federal.

Esses dois instrumentos de defesa do Estado compreendem medidas excepcionais como, por exemplo, a suspensão de determinadas garantias constitucionais somente admitida em momentos peculiares e autorizada exclusivamente pelo Presidente da República e pelo Congresso Nacional.

Nesse sentido, ainda que estivéssemos vivendo uma situação extremada em que esses dois instrumentos tivessem que ser efetivamente utilizados pelo Estado, o próprio prazo de duração destas medidas excepcionais, de acordo com o estabelecido na Carta Magna, já teria se exaurido nas favelas sob “pacificação”.

Desta forma o modelo de militarização das favelas “pacificadas” vem nos remetendo a um período triste e marcante da história política brasileira.

O que vem se desenhando é a imposição de um verdadeiro estado de exceção não autorizado, na contramão do Estado Democrático de Direito.

É a mais perfeita tradução da letra do Marcelo Yuka: “Paz sem voz não é paz, é medo”.

*Advogado, sub-secretário de cultura em Belford Roxo.