Sobre dias ácidos

Crédito: Priscila Barbosa

Era segunda-feira e, definitivamente, eu não estava disposta a começar a semana de mau humor. Os livros de autoajuda me fizeram propostas, os amigos me sugeriram a meditação, as amigas mais zens me indicaram a yoga e uma das parceiras de trabalho havia dito que eu estava estressada demais.

Foi então que decidi, “vou parar meu trabalho por 5 minutos e descer até a feira e relaxar um pouco. Eles devem ter razão”, pensei.

Os dias estão muito ácidos. Eu ando muito tensa e preciso, apenas por 5 minutos, não olhar as estatísticas e respirar. 5 minutos. Só isso e volto. Pensei em comprar flores, pois uma conhecida me explicou que as energias negativas transpassam para a planta.

Abandonei a missão. O dinheiro não dava!

Coloquei um tênis no pé, no fone a playlist mais leve possível e segui em busca do meu caldo de cana perdido.

Porém, mal pude saborear a minha liberdade e bem no meio do caminho estava a polícia. Na moto, dois rapazes de capacete assustados. Uma amiga que me acompanhava se distanciou de mim. Foi olhar de perto e disse: “Esses meninos trabalham aqui, vou chamar o pai deles.”

Enquanto os policiais separavam os rapazes, um deles tentava acalmar tudo. O outro agia de maneira mais violenta e agressiva. O parceiro dizia: “Calma, cara”. E ele esbravejava xingamentos, com o fuzil em uma das mãos.

Eu ainda tentava me acalmar, quando o pai dos meninos, um feirante, chegou perto.

“Quem me garante que ele é o pai de vocês?”, indagou o policial furioso.

Aqueles fuzis me fizeram paralisar. Eu bem sei como funcionava na favela, a gente não tem tempo de argumentar ou provar a inocência que nos é fragmentada junto com a abordagem.

Eu simplesmente travei e meu coração começou a acelerar. Não conseguia sair do lugar.

Tentei começar o dia transmitindo paz, afinal é o que desejo e me perdoem se o país em que vivemos nos extermina em doses cada vez maiores. Senão pela bala perdida, a acertada. Nos matam aos poucos pela depressão, pelo medo, pela falta de certeza que nossa(o)s filha(o)s, irmã(o)s, amiga(o)s, vão voltar para casa.

Agora fica a pergunta: Qual a cor de pele dos meninos na moto que você imaginou durante esse relato?

Qual a cor de pele do policial mais agressivo? E a do mais calmo?

Não responda pra mim, responda pra você mesma(o). Afinal de contas, foi essa a imagem que nos enfiaram garganta abaixo, durante toda uma história de séculos.

Bem sei que a acidez do dia a dia, diante de tantos atos de resistência, combatendo intervenções infundadas, é praticamente parte de nós. Sei também que nos manter saudáveis emocionalmente e psiquicamente é um desafio quase que inalcançável, mas é preciso alinhar os pensamentos para não enlouquecer.

No final da situação apresentada, ganhei uma rosa vermelha do senhorzinho da floricultura. Me questionei, quantas flores as famílias ainda vão ter que comprar para acompanhar os seus filhos que nunca mais vão voltar. Respirei e entendi que não vamos transformar histórias se, de vez em quando, não pararmos e olharmos para as poucas coisas boas que nos restam. Para os fragmentos de coisas positivas que resistem em meio ao caos.

E a cada dia que passa e vejo irmãos e irmãs em uma expressão diária de busca pela alteração desse cenário caótico, tenho certeza que a única solução é entendermos que somos nós por nós mesmos e, se assim não for, dificilmente teremos dias doces para seguir.