SANTA MARTA: “Cada tijolo erguido tem sua história”*

Kadão Costa, do Ecomuseu Nega Vilma, conta a história de Vilma e da favela Santa Marta para grupo de visitantes na parte externa do ecomuseu.

O bondinho do Santa Marta foi inaugurado em 29 de maio de 2008 e em 19 de dezembro do mesmo ano, neste mesmo morro, foi instalada a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Cidade do Rio de Janeiro. Plano inclinado para uma das favelas mais ingrimes da cidade, Favela Modelo com a UPP. Dois anos depois começou a funcionar no Santa Marta o projeto Rio Top Tour, parceria entre o Ministério do Turismo e o governo do Rio de Janeiro. A favela Santa Marta teve sua origem entre os anos de 1920-1930, tem área de 53.706m² e cerca de 4.000 moradores.

Por Miriane da Costa Peregrino

Rio de Janeiro, Botafogo, Zona Sul

Comunidade do Santa Marta,

73 anos de resistência, meus parceiros.

Subir, descer. Descer, subir.

Todos os dias. Pode acreditar…

788 pra chegar lá no pico

788 tem que ter fé em Cristo

788 pra mim chegar em casa

788 é a real do Santa Marta!

…Hoje tem bondinho, mas não posso me iludir

Ih, babou… a pé tenho que subir

788. Repper Fiell. CD Pedagogia da Dominação (2013)

1. Bondinho

Encontrei Dona Maria de Lourdes, 57 anos, na primeira parte da escadaria da favela Santa Marta. Perguntei onde ficava a associação de moradores e prontamente ela disse: “Eu vou subir até a estação 4. É caminho. Vem comigo, te levo lá”. Eu, que já tinha subido o morro uma vez, estranhei: são 788 degraus até o pico do Santa Marta, que é na estação 5, ou seja, até a estação 4 ela subiria pelo menos uns 500 degraus. Então, perguntei porque ela não ia subir de bondinho. D. Maria de Lourdes sacudiu os ombros, pegou as sacolas de compras que tinha arreado no chão, deu uma leve risada e respondeu: “O bondinho não tá funcionando hoje. Vai ser a pé mesmo”.

Nesse momento passou um carteiro, que preferiu não se identificar: “Quando o bondinho funciona, subo nele; quando não é a pé. Hoje não tá funcionando, tem que ser a pé”.

Degraus do Santa Marta. Destaque para a casa de madeira. Foto: Miriane Peregrino
Degraus do Santa Marta. Destaque para a casa de madeira. Foto: Miriane Peregrino

O morador Cosme Uchôa, 59 anos, também se queixa do mal funcionamento do bondinho e acrescenta que é um problema que a empresa tem que corrigir: “Tem pessoas que trabalham e se esforçam ao máximo para que as coisas funcionem. O Juliano, por exemplo, que é morador e trabalha lá. Mas tem que comprar peça pro bondinho, tem que trocar um monte de coisa. A empresa tem que fazer isso. A Prefeitura tem que ver”.

“Como sempre tá parado” – continuou D. Maria de Lourdes – “Eu subo devagar. Tem gente que usa muleta. Tem gente que nem sai de casa porque é deficiente”.

O bondinho é gratuito e faz o percurso de 5 estações até o pico do Morro Dona Marta. Quando questionada sobre a última vez que o bondinho funcionou, a moradora lembrou: “Sábado funcionou”.

2. Turismo

Se o mal funcionamento do bondinho incomoda os moradores, parece não atrapalhar o crescente fluxo de turistas no Santa Marta. Segundo José Elias, morador do morro e guia local, 80% dos turistas que recebem no Santa Marta são estrangeiros.

“A procura pelo Santa Marta é grande, é a favela que tá realmente pacificada. Nosso fluxo de turista é de 2 mil pessoas por mês” – afirma o guia de turismo.

O projeto Rio Top Tour, parceria entre o Ministério do Turismo e o governo do Rio de Janeiro, apresenta pelo menos 34 pontos turísticos localizados no Santa Marta, dentre eles estão a trilha para o Mirante Dona Marta com vista para o Cristo Redentor, igrejas evangélicas e capela, Mirante Pedrão e a Laje do Michael Jackson.

"O Rio de Janeiro sob um novo ponto de vista" - placa informativa do Rio Top Tour traz a lista dos 34 pontos turísticos da favela. Praça Corumbá. Santa Marta/Botafogo. Foto: Miriane Peregrino
“O Rio de Janeiro sob um novo ponto de vista” – a placa informativa do Rio Top Tour traz a lista dos 34 pontos turísticos da favela. Praça Corumbá. Santa Marta/Botafogo. Foto: Miriane Peregrino

Tanto o guia de turismo José Elias quanto o presidente da Associação de Moradores do Santa Marta e da União Comunitária, José Mário, afirmam que o ponto turístico mais visitado da favela é a estátua do Michael Jackson, na estação 4 do bondinho. A estátua em bronze foi inaugurada no Santa Marta em 2010, um ano após a morte do cantor, foi chamada pelo Governo do Estado de “Laje do Michael Jackson” e relembra a visita que o cantor pop fez à favela para gravação do clipe “They don’t care about us”, em 1996.

Questionado sobre o turismo no Santa Marta, o presidente da Associação de Moradores, José Mário, apontou aspectos que considera positivos e negativos nesse processo:

“A gente recebe cerca de 10 mil turistas, sendo três mil internacionais, a mês”- contabiliza Zé Mário – “O positivo é que cria-se uma expectativa dentro da comunidade, melhora o empreendedorismo, as pessoas se interessam pra tá falando outras línguas: inglês, espanhol, francês. Tem esse lado positivo da coisa e o negativo é que a comunidade se sente um parque de diversão onde as pessoas vem aqui e parece que a gente é uns bichinhos de jardim zoológico. As pessoas vem, andam, olham pra gente com aquela carinha e vão embora. É o lado negativo que eu acho da coisa”.

Morador da favela, o sr. Ronaldo, 60 anos, se mostra impressionado com o fluxo de turistas: “Aqui é muito gringo. Sábado e domingo cedinho já estão descendo. Tiram foto até de rato, até de cocô de cachorro, moça. Tudo é novidade pra eles”. Sobre a vida na favela, sr. Ronaldo afirma: “Melhorou, mas pra ser favela modelo tá muito longe…”.

As frases "Favela Modelo De Que?" e "Expulsão Branca" na faixa de um barraco do Santa Marta mostram a insatisfação de moradores. Foto: Miriane Peregrino
As frases “Favela Modelo De Quê?” e “Expulsão Branca” num barraco do Santa Marta mostram a insatisfação de moradores. Foto: Miriane Peregrino

Para Cosme Uchôa, morador, o Santa Marta também precisa melhorar: “O favelado também precisa repensar o lixo do morro. Tudo tem que ser repensado. A Coral pintou umas casinhas aí, mas olha a propaganda da Coral. Tudo isso é investimento. Nada chega aqui de graça”.

Por outro lado, no stand de informações turísticas que fica na Praça Corumbá, um ponto da favela que, pelo menos por enquanto, não consta entre os 34 pontos do Rio Top Tour é o Ecomuseu Nega Vilma, localizado no pico do morro. Segundo o guia de turismo, isso se deve ao fato da equipe não ter conhecimento da programação do ecomuseu.

Segundo Kadão Costa, 38 anos, fundador e um dos gestores do ecomuseu, a não inclusão do Nega Vilma na lista de pontos turísticos da favela se deve ao fato do material de turismo existente ter sido produzido antes da formalização do ecomuseu – o CNPJ foi tirado em 2013. “Além disso, o Santa Marta tem uma força política muito grande e também existem várias instituições” – afirmou Kadão Costa. Sobre a visitação, Kadão informou que o ecomuseu está passando por uma reformulação e as visitas podem ser agendadas diretamente com a instituição através de e-mail e/ou celular.

3. O Ecomuseu Nega Vilma

Ecomuseu é o nome que se dá, na área da nova museologia, a uma ação que parte de uma comunidade para desenvolvimento do seu território, valorizando não só a história e a cultura locais mas também seu ambiente natural.

Fundador e um dos gestores do Ecomuseu Nega Vilma, Ricardo da Silva Costa, conhecido como Kadão, é sobrinho-filho da rezadeira Nega Vilma (1943-2006) e conta que partiu da história de sua família para contar um pouco a história do Santa Marta e acredita numa integração morro e asfalto através da cultura. Kadão afirma ainda que muitas descrições sobre o Santa Marta “reduzem a comunidade ao lugar onde Michael Jackson passou”.

Folder do Ecomuseu Nega Vilma. 2010
Folder do Ecomuseu Nega Vilma. 2010

Para Kadão Costa, “Nega Vilma congrega em sua história marcas muito presentes que simbolizam tantas outras histórias nessa e em outras comunidades” – e acrescenta – “A relação com a comunidade [do Santa Marta] ainda não é a ideal. Existe uma certa resistência quanto ao fato de todos acharem seus parentes tão ou mais importante que Nega Vilma para receber o nome [do ecomuseu]. Tem também o fato das pessoas não valorizarem seu espaço e não reconhecerem valor no seu cotidiano. Porém, esse quadro já vem mudando e hoje temos uma relação bem melhor do que quando começamos”.

Kadão Costa, do Ecomuseu Nega Vilma, conta a história de Vilma e da favela Santa Marta para grupo de visitantes na parte externa do ecomuseu.
Kadão Costa, do Ecomuseu Nega Vilma, conta a história de Vilma e da favela Santa Marta para grupo de visitantes na parte externa do ecomuseu.

De fato, quando chegamos no Santa Marta, poucos moradores sabiam dar informações sobre o ecomuseu. Foi através de agendamento que um grupo de jovens do conjunto de favelas da Maré conheceu o Ecomuseu Nega Vilma no ano passado. Numa manhã ensolarada de sábado, Raíza Barros, 17 anos, passou mal na subida do Santa Marta e só chegou ao pico onde fica o ecomuseu porque terminou a subida no bondinho.

“Confesso que achei muito estranho aquele museu, é um quarto… e é difícil de chegar” – disse a adolescente – “Outra coisa que fiquei pensando foi naquele tanto de degraus pro povo subir, já que o bondinho foi colocado só a 5 anos. São muitos degraus, fiquei assustada!”

As dificuldades de acesso a casa da rezadeira Nega Vilma (1943-2006) nos remetem, a todo o tempo, à história de formação do espaço e de luta dos moradores. Não bastassem os 788 degraus até o pico, o terreno é bastante acidentado, e essas são apenas algumas dificuldades que sinalizam para a rotina de resistência diária não só de Nega Vilma, mas de todos os moradores e moradoras da favela. Além disso, é uma resistência necessária ainda nos nossos dias e que vimos estampada em D. Maria de Lourdes, 57 anos, carregando suas sacolas de compras numa tarde de janeiro de 2015, no dia em que o bondinho, mais uma vez, não funcionou.

Sobre a visita, Matheus Frazão, 17 anos, chamou nossa atenção para outros aspectos: “Fomos muito bem recebidos, trocamos ideias, falamos sobre a religiosidade que é um ponto muito forte dentro das comunidades, seja ela católico ou a rezadeira e a vista lá de cima é linda”.

Aspecto externo da casa de um cômodo onde morou Nega Vilma e onde é preservada a sua memória. Ecomuseu Nega Vilma. Foto: Miriane Peregrino
Aspecto externo da casa de um cômodo onde morou Nega Vilma e onde é preservada a sua memória. Ecomuseu Nega Vilma.
Exposição fotográfica na parte interno do Ecomuseu Nega Vilma.
Exposição fotográfica na parte interna do Ecomuseu Nega Vilma.

Embora o ecomuseu não tenha um roteiro programado, Kadão Costa informa que possuem alguns parceiros no morro que apoiam suas atividades, tais como o restaurante da Vanderléia e o sorvete da Lurdes, onde também levam os visitantes: “não temos um roteiro programado, temos opções que vão depender do tipo de visitante que teremos” – disse Kadão – “Como Ecomuseu existimos desde 2009, na verdade, existimos através de doações da própria família de Vilma e amigos. Não temos nenhum patrocínio, mas estamos legalmente existindo como empresa sem fins lucrativos”.

Ecomuseu Nega Vilma

Rua da Tranquilidade, n. 3, casa 2,

Pico do Santa Marta/Botafogo

Rio de Janeiro/RJ

*Agendamentos de visitas

Email: KadaoCosta@gmail.com

Telefone: (021) 9 8825-0576 – falar com Kadão Costa

4. Do Santa Marta para outras favelas

Em luta contra a especulação imobiliária, o aumento da taxa de luz, repressões do estado, e outros, muitos moradores do Santa Marta estão se organizando e o resultado são manifestações, músicas, documentários e livros. Além disso, embora ainda não seja a favela modelo que o governo propõe, é perceptível um aumento de moradores estrangeiros na favela. O morador Cosme Uchôa, casado com uma sueca, afirma que há alguns no Santa Marta: “Aqui tem moradores estrangeiros, mas eles gostam mais do Vidigal, né?”

Em 2010, foi lançada a Cartilha Popular do Santa Marta: abordagem policial, um instrumento que busca afirmar os direitos dos moradores e fortalecer a comunidade. Outra referência importante para entender a formação da favela e a intervenção do Estado sobre ela, principalmente no uso da força policial, é o documentário dirigido pelo cineasta Eduardo Coutinho, Santa Marta. Duas semanas no morro que embora date de 1987 aponta aspectos ainda atuais.

Já Repper Fiell, nascido na Paraíba e morador do Santa Marta há cerca de 9 anos, conta a história de resistência da favela através do hip hop e lançou em 2011 o livro Da favela para as favelas: história e experiência do Repper Fiell onde conta sua história de migrante nordestino e morador da primeira favela do Rio de Janeiro a receber a UPP.

“Até a chegada das olimpíadas, em 2016, não sei se estaremos aqui no morro Santa Marta. Hoje, mais do que nunca, temos um custo de vida muito caro. A nossa conta de luz chega com valores aleatórios. (…) sutilmente, estão higienizando a favela, sem que a totalidade dos moradores perceba”. – trecho de Da favela para as favelas (FIELL, 2011, p. 62-63).

Jeferson Luciano, 17 anos, embora reconheça a coragem do autor em falar o que pensa acha que ele “exagera as vezes quando, por exemplo, critica as pessoas que vão ao shopping passear”.

Já Jailton Ferreira, 17 anos, um dos adolescentes da Maré que leu o livro e visitou o Santa Marta, comentou: “O Repper Fiell está próximo de nós, favelados, em relação ao conhecimento do que seja realmente favela, o que acontece aqui dentro e de que nós não somos marginais”. Impressão semelhante também teve Aline Moura, 17 anos: “A impressão que o livro dá é que ele conversa pessoalmente conosco, abrindo nossos olhos quanto a injustiça, discriminação, pobreza, direitos que não temos, tudo que ocorre diariamente em nossa favela chamada de comunidade pelos políticos que passam uma maquiagem na nossa situação”.

*Trecho da música Pra Vencer. Repper Fiell. CD Pedagogia da Dominação.

Mais informações

Cartilha Popular do Santa Marta: abordagem policial (2010)

Disponível no site:

http://global.org.br/wp-content/uploads/2012/02/Cartilha-popular-do-Santa-Marta-Abordagem-policial-2010.pdf

Da favela para as favelas: história e experiência de Repper Fiell

Email: fiellateamorte@gmail.com

acesse: www.repperfiell.com.br

Ecomuseu NegaVilma

Site: http://ecomuseunegavilma.wix.com/santamartarj#!negavilma/c1iqw

Vídeo de divulgação: https://www.youtube.com/watch?v=qAIln568OIc&feature=youtu.be

Santa Marta. Duas Semanas no Morro – direção do Eduardo Coutinho (1987)

Disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=dErVvYLO67M

Video Clipe da música “788″ – CD Pedagogia da Dominação. Repper Fiell.

https://www.youtube.com/watch?v=EqKWxkLmJCE

UPP do Santa Marta

Site: http://www.upprj.com/index.php/informacao/informacao-selecionado/ficha-tecnica-upp-santa-marta/Santa%20Marta