República militar

Ao pé do ouvido, velho hábito militar. Imagem: reprodução internet (Fernando Souza/AFP)

Pra começo de conversa, vamos deixar claro que não sou contra o emprego de reservistas das forças armadas em trabalhos civis. Entretanto, é preciso contextualizar a coisa: o ministro Paulo Guedes fez uma conta segundo a qual não promoveria demissões no setor porque bastava interromper os concursos públicos e o tempo faria o resto, aposentando empregados a cada ano, até reduzir o efetivo em 40%.

As expectativas em torno da reforma da Previdência precipitaram os acontecimentos, aumentando o número de processos de aposentadoria e sobrecarregando o atendimento. Em novo cálculo, o governo decidiu convocar ao serviço sete mil reservistas remunerados do exército, recebendo mais 30% do que ganham, para eliminar as filas nos postos.

Por que não fez um concurso público para contratação de pessoal, até em caráter emergencial? Ah, não senhor! isso seria dar o braço a torcer, reconhecer o erro de cálculo lá atrás e, ainda por cima, contrariar a diretriz traçada pelo ministro da Economia, que é enxugar o estado até não poder mais.

Então, teremos uma despesa extra de um terço a mais do que é gasto com aposentadorias pagas a sete mil reservistas, quantia que não sabemos ao certo, gerada por erro estratégico e agrado do governo à sua base eleitoral. O que você, que me acompanha até aqui, acha que está na origem desta distorção?

Em muitos países as forças armadas são convocadas para ajudar a tirar o povo do atoleiro depois de catástrofes naturais, como terremotos, furacões e epidemias. No Brasil também, para atender projetos e planos de governo, como construção de estradas, contenção de revoltas, vacinação e manutenção da lei e da ordem através de intervenções.

Há uma sutil diferença entre socorrer a população civil e intervir militarmente sobre ela. Aqui nos conformamos ao uso da força por quem detém seu monopólio (o Estado) para fazer cumprir a vontade dos poderosos, desde a colonização até a república.

Além do mais, soldados não devem ser convocados por qualquer coisa. Quem diz é o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, que discorda frontalmente da iniciativa de Bolsonaro:

“Militares no INSS? Não tem cabimento. Os funcionários do INSS sabem dar as ideias para a solução. Tem que valorizar a instituição e as soluções irão aparecer. Colocar militares para qualquer  coisa é simplismo, falta de capacidade administrativa. É obrigação valorizar as instituições”, disse à reportagem do UOL.

Pena que o general Santos Cruz, apontado entre uma das vozes mais respeitadas no exército, tenha enfrentado fogo dentro do governo desde o quarto mês, quando virou alvo de Olavo de Carvalho, Onix Lorenzoni, Fabio Wajngarten e finalmente Carlos Bolsonaro, o demolidor de reputações. Em 13 de junho foi demitido pelo presidente.

Wajngarten é o secretário especial de comunicação social do Planalto e está hoje no centro de uma denúncia de conflito de interesses na área em que atua. Consta que é amigo de Carluxo, o que pode render uma sobrevida no cargo. Esperemos.

Pode-se dizer que este é o tributo pago à história pela república que nasceu defeituosa e assim continuou pelos tempos. O historiador (e general) Nelson Werneck Sodré, escreveu que foi a crise entre militares e o império, “de origem e evolução bem diversa” do republicanismo, o principal fator na queda da monarquia. Ou seja, a república é fruto de intrigas, cobiças, invejas, ressentimentos e pouco ou nenhum sentimento cívico.

Durante todo o ano de 1889, um grupo de militares do exército conspirou contra a coroa defendendo a instalação de uma ditadura militar permanente, com generais-presidentes vitalícios indicando seus sucessores. Floriano Peixoto foi um dos cabeças do movimento e acabou se tornando o segundo presidente, com a deposição de Deodoro da Fonseca.

O golpe militar esteve na raiz da república e se mantém até hoje, mesmo que grande parte da imprensa e da intelectualidade negue ter havido algo do estilo em 2016. No entanto, o próprio Jair Bolsonaro, eleito dois anos depois, discursou diante do ex-comandante do exército general Villas-Boas, creditando a ele sua eleição.

Durante a campanha, o candidato disse ter mantido um “encontro secreto” com o comandante militar, que à época da facada em  Juiz de Fora já tinha manifestado preocupação com a governabilidade futura do país em decorrência do “atentado”. Tais declarações de ambos revelaram que as forças armadas não apenas torceram como ajudaram Bolsonaro contra Fernando Haddad e o Partido dos Trabalhadores.

Durante a campanha eleitoral, foram amplamente divulgadas nos jornais as visitas do candidato a unidades das forças armadas, das polícias militares e de policiais civis pedindo votos e prometendo o tempo de “os capitães mandarem”. tal comportamento é absolutamente ilegal, mas quem se importava? A justiça eleitoral?

Somam atualmente mais de cem os militares em altos cargos no poder executivo federal, em funções ministeriais, chefias de gabinete, presidências de empresas públicas etc. O país está de volta ao tempo dos generais e coronéis, o que é muito bem visto por parte considerável da população dita escolarizada e instruída, que enxerga nas fardas uma blindagem contra a corrupção.

Essas pessoas se esquecem de que corrupção é inerente ao ser humano e que no poder sempre houve, há e haverá desvios de comportamento e de dinheiro, não importam salvadores nacionais como Sérgio Moro e o próprio Bolsonaro. Houve corrupção grossa na ditadura militar que não veio a público em função da censura à imprensa, e no principado de Fernando Henrique foi tamanha a roubalheira que ficaram famosos os  dossiês e as denúncias abafados pela compra de políticos e da imprensa.

Sabe-se que a emenda constitucional da reeleição feita sob medida para Fernando Henrique “custou” 600 mil reais por voto pela aprovação no parlamento. Igualmente, é sabido o resultado do escândalo do Banestado, em que despontou o atual ministro Sérgio Moro. Neste caso, todos os envolvidos eram do partido do presidente e foram absolvidos.

Enfim, são essas mesmas pessoas, ingênuas, inocentes, ignorantes ou apenas motivada por má-fé própria ou alheia que aí estão defendendo o atraso. São mobilizadas pela televisão em cruzadas contra corruptos da hora, se indignam e acreditam nos tuítes da família presidencial, são a massa de manobra histórica em defesa da tradição, da família e da propriedade (embora quase sempre sem propriedade, família tradicional e nem qualquer tradição a defender).