Relatos de quem vive o retrocesso nas políticas de drogas e saúde mental

Manifestação contra as internações compulsórias. Foto: Mariana Alvernaz

Em julho fará um ano que o presidente Jair Bolsonaro, sancionou Lei 13.840, que entre outras medidas, autoriza a internação compulsória de dependentes químicos quando solicitada por familiares, responsável legal, ou até de um servidor público da área de saúde, área da educação e assistência social. A internação compulsória (com mandado judicial), acelera o processo de tratamento, que por lei, comunica-se ao Ministério Público que passa a acompanhar a pessoa com dependência que irá se desintoxicar e continuará o tratamento. A opinião dos especialistas em políticas públicas da área de dependência química são contrárias a internação sem consentimento dos pacientes. Os especialistas argumentam com a falta de acompanhamento dos casos já internados, faltas de leitos e principalmente a ausência de programas de redução de danos e acompanhamento do dependente.

Eu poderia desdobrar essa temática por diversos viéses como: segurança, saúde, assistência social, direito à cidade entre tantas outras políticas pertinentes ao problema das drogas, mas opto aqui por fragmentos de depoimentos que ouvi e acompanhei ao longa da minha vida. Começo falando da Laura, que foi internada seis vezes durante a vida, a última na semana passada.

A primeira vez estávamos no primeiro ano do ensino médio, foi pega fumando maconha na quadra da escola, uma pedagoga evangélica indicou uma psicóloga (A Marisa Lobo que defendia a “cura gay”), e Laura foi internada compulsoriamente em 2007, passou três dias no Hospital de Clínicas e foi encaminhada para um Centro de Atenção Psicossocial Infantil e perdeu o ano letivo. Nos encontramos no último ano da faculdade, Laura me contou que depois da escola tinha passado quatro vezes por clínicas, apenas uma vez por vontade própria, uma delas após uma tentativa de suicídio. As outras três compulsórias – no desespero e sem conversa. Foram mãe, vó, namorado e até mesmo vizinho, alguém que sentia responsável por manter o controle e nas palavras de Laura diziam “ é melhor para você”, e saía só com alta do responsável mesmo que seja maior de idade. Segundo Laura é uma “ infantilização, uma ridicularização da sua vida, fora a culpa que fazem a gente carregar”. Laura conta também sobre os amigos das internações ao que diz nunca ter gostado de trocar telefone e redes sociais, pois as notícias nunca eram boas.

Culpa, é um denominador comum entre os dependentes, de acordo com o Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela população Brasileira de 2015 coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 73% dos usuários internados se sentem em dívida com a família e com a sociedade. A pesquisa também revela que 33% das mulheres grávidas que foram internadas compulsoriamente tiveram seus filhos acolhidos compulsoriamente, 82% dos casamentos não resistem a uma internação. E quase metade dos usuários passam por uma ou mais internações, 54% já foram internados sem vontade própria mais que uma vez.

Carlos Eduardo, ou Cadu, é um outro amigo veterano em internações compulsórias e prisões por tráfico. Cadu, sempre contou que ao sair da clínica ou da cadeia a maioria das pessoas querem cortar a relação com o vício. Uma das coisas que mais me choca tanto no depoimento dele quanto da Laura é sobre as medicações e falta de psicólogos. Laura fala que até hoje não sabe quais medicamentos eram aplicados de duas em duas horas. Cadu conta que era amarrado e muitas vezes não era permitido nem ir ao banheiro. A última vez que vi a Laura, ela estava com problemas de dicção por conta da medicação, que era forte demais. Ela se recuperou quando parou de tomar remédios.

Eles contam que era comum todos os internos urinarem nas camas e nas calças devido a medicação, a falta de atividades e conversas individuais ou em grupos era desesperadora. Cadu conta que tinham atividades de reza e cantoria, já Laura fala de assistir filmes infantis e religiosos e grupos de conversas orientados por religiosos e sem acompanhamento profissional. Um dos depoimentos mais fortes que ouvi saiu de Laura, que foi colocada em uma camisa de força durante uma crise de pânico gerada por pensar o que seria dela após sair da internação. Cadu fala que pior que o estigma de bandido na cadeia é o estigma de incapaz e sem futuro de interno de clinica de recuperação. “Um monte de homem barbado, pais de família, com profissão sendo tratados igual crianças fazendo chaveiros de miçanga e coral com músicas gospel quase infantis, era degradante”, disse.

Atualmente Cadu trabalha na segurança de um dos principais shoppings de Curitiba, se separou mas tem um bom convívio com a esposa e os filhos, entrou para faculdade de educação física e pensa em ter uma academia. Frequenta um grupo para dependentes de álcool, tem acompanhamento psiquiátrico e psicológico e frisa que a principal profissional responsável pela sua recuperação foi a assistente social Vera, que o viu como um sujeito, que resgatou seus laços familiares e o acompanhou.

Laura se formou em Sociologia em 2016, trabalhava no shopping e era professora auxiliar num cursinho pré vestibular. Ela encontrou um tratamento gratuito com psicóloga, assistente social e psiquiatra. A última vez que nos encontramos, em uma palestra sobre habitação social e gentrificação, Laura estava na mesa entre as debatedoras, estava lá linda, inteligentíssima, reconhecida e bem. Depois que acabou a palestra, conversamos ela frisou que a vida dela mudou e ela entendeu que os desequilíbrios e problemas emocionais precisavam ser tratados e que ela é a detentora da própria vida, uma adulta capaz que diminuiu o vício,aprendeu o quanto a saúde dela importa, parou de se cortar e que as escolas dela eram responsabilidades dela e somente dela. Já eram quatro anos de uma vida nova.

Segunda feira, tive a notícia que Laura foi internada em Maringá de forma compulsória depois de ter sido vista bêbada chorando a morte do irmão, vítima de Covid-19. Lembrei de Laura naquela palestra, na rede de mulheres que ela faz parte aqui em Curitiba, nas dezenas de mulheres vítimas de violência que ela encaminhou para tratamento, lembrei de Laura que falava espanhol e francês, lembrei de Laura que tem currículo Lattes e que faz parte de grupos de estudos e movimentos sociais, lembrei da potência que é Laura. Mas lembrei também que voltaram as novas diretrizes para a política de drogas que autoriza as internações compulsórias de dependentes químicos.

Internação compulsória, camisas de forças, pessoas dopadas, miçangas, boca seca, música gospel, Laura silenciada, milhares de pessoas pelo Brasil repetindo músicas gospel, sem ser ouvidas, dopadas e com a boca seca. Em julho faz um ano das novas políticas de drogas que permitem a internação compulsória de dependentes químicos, em julho faz um ano que talvez milhares de Cadus e Lauras nunca descubram as potências que são. Haja fôlego para aguentarmos um governo de tanta repressão e haja forças e sonhos para consertarmos todos esses retrocessos quando tudo isso acabar.