Racismo e misoginia: a violência contra mulher na Bahia

Uma pesquisa realizada pela Jornalista Negra revelou que  65,9% das mulheres em situação de violência não conseguiram identificar estar passando por violência de gênero no momento da agressão.

A violência contra mulher é mais comum do que você imagina e as informações sobre os seus diversos tipos precisam ser compartilhadas.

Uma entrevista realizada pela Jornalista Negra, com 44 mulheres de Salvador (BA), em setembro de 2022, revelou que 65,9% das entrevistadas em situação de violência não conseguiram identificar estar passando por violência baseada em gênero no momento da agressão, ainda, verificou que as negras (classe C, D e E) correspondem 88,6% do público violentado.

Na abordagem foi possível verificar o perfil mais atingido, marcadores sociais e como a falta de informação dificulta o reconhecimento de situações e acesso à justiça.

No levantamento 79,5% das mulheres afirmaram terem sido expostas à violência de gênero e 22,7% disseram que não, mas após elencar e descrever as categorias, o público que negou anteriormente conseguiu identificar através das descrições as violências já sofridas.

A psicológica ficou entre as mais citadas. Perguntadas sobre o local onde ocorreu a violência, o ambiente doméstico se destacou com 56,8%, em seguida, vias públicas 34,1%, espaços acadêmicos 25%, trabalho 13,6%,  academia 4,5%, e locais não mencionados 36,4%.

Crédito: Reprodução

De acordo com a Lei Maria da Penha, Capítulo II, art. 7º, incisos I, II, III, IV e V, são previstos cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Listadas na pesquisa por amostragem elaborada pela Jornalista Negra, o resultado é o seguinte: violência psicológica 68,2%, violência sexual e moral 38,6%, violência física 34,1% e violência patrimonial 11,4%.

Dandara Ramos (nome fictício), 23, mulher preta e periférica, conta que foi exposta a mais de um tipo de violência e, entre elas, a exposição de suas imagens íntimas sem consentimento.

“Infelizmente já sofri mais de um tipo de violência, uma em que eu fui completamente exposta publicamente, na qual eu tive um vídeo íntimo divulgado. Outra em que eu fui violada sexualmente, era meu companheiro e eu achava “normal”, mas não era, porque a partir do momento que o parceiro quer e a mulher não, já deixa de ser normal. Mas como eu vivia em um relacionamento extremamente tóxico, me rendia aquela satisfação, era totalmente horrível. A outra violência que me marcou foi quando eu fui assediada dentro da faculdade, eu estava sozinha e o indivíduo tentou me agarrar a força, no momento os corredores estavam vazios, mas de tanto eu pedir para parar, ele desistiu e seguiu o caminho dele”, relata.

Dandara, além de lidar com os traumas recentes à época, teve que encarar os julgamentos da sociedade e da justiça.

“A partir do momento que eu parei para raciocinar e me vi naquela situação, eu percebi o quão violentada eu tinha sido, sem contar os julgamentos, a gente acaba sofrendo mais de uma vez. Contei para minhas irmãs e amigos que realmente eram confiáveis, também fui a delegacia, mas infelizmente não tive o devido apoio e acabei sendo taxada como errada por ter um vídeo íntimo meu exposto. A partir disso me dei conta que não estava segura. Sinto que nós mulheres negras, nunca estaremos totalmente seguras enquanto não formos tratadas da maneira correta, com humanidade, afeto e respeito”, desabafa.

A cultura sexista, racista e missógina andam lado a lado no Brasil, o país que violenta mulheres e silência suas vozes é o mesmo que normalizou a violência sexual às negras cativas, as submentendo como objetos sexuais dos (imundos) escravocratas. Quem acredita que o ódio à mulher está apenas relacionado ao seu status atual, precisa resgatar na memória que a sociedade brasileira foi construída sobre sangue, lágrimas e suor de mulheres pretas.

O autor, Abdias Nascimento (2016) retratou a estrutura social criada a partir da política de desqualificação, desumanização e hipersexualização dos corpos de mulheres negras, presente até os dias atuais.

Esta, ressignifica a existência das mulheres pretas como não merecedoras de ascensão social, cuidado e afeto. Como em sua obra diz,  “O Brasil herdou de Portugal a estrutura patriarcal de família e o preço foi pago pela mulher negra, não só durante a escravidão. Ainda nos dias de hoje, a mulher negra, por causa da sua condição de pobreza, ausência de status social, e total desamparo, continua a vítima mais fácil, vulnerável a qualquer agressão […]”.

Dados de violência contra mulher no Brasil

No Brasil, em 2019, os 3.737 casos de mulheres assassinadas equivaliam uma taxa de 3,5 vítimas para cada 100 mil habitantes do sexo feminino; Na Bahia, o número equivalia uma taxa de 5,0 vitimas para cada 100 mil habitantes.

Em parâmetro nacional, 66% das mulheres assassinadas eram negras, de acordo com o Atlas da Violência 2021. Ainda segundo a publicação, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 2,5 a mesma taxa para mulheres negras foi de 4,1.

Apesar da violência atingir todo público feminino, as mulheres negras/pardas são as mais vulneráveis, para além disso, o desprivilegio e marginalização compulsória transforma suas existências, sistematicamente, em posição de subalternidade. O arquétipo criado pelo branco vêm, historicamente, causando insensibilidade social e dificultando o acesso à justiça – poder estruturado pelo homem, branco, cisgênero, elitista e corponormativo. A falta de representatividade no poder judiciário e governamental resulta, na maioria das vezes, na inobservância seletiva e fortalece a discriminação sobre os corpos negros e periféricos. 

Relembre um caso

A exemplo do caso revelado pelos sites Portal Catarinas e The Intercept no qual uma menina de 11 anos, exposta à violência sexual, ao ser encaminhada para um Hospital em Florianópolis teve o procedimento para interromper a gestação negado após descobrir estar com 22 semanas de gestação.

Ao recorrer à justiça, a criança foi questionada pela juíza, Joana Ribeiro Zimmer, sobre suas vontades em manter a gravidez para aumentar a chance de sobrevida do feto. 

No vídeo publicado, às perguntas repetitivas direcionadas à criança pareciam estar destinadas a um adulto não violentado, mostrando a percepção colonial da contemporaneidade de não enxergar crianças negras como são, as tirando até os direitos de viver a infância.

O caso nos faz refletir a realidade de ser uma criança do sexo feminino e desprivilegiada dentro de um país onde a cultura do estupro está diretamente ligado a colonização e como a narrativa de marginalização tem como foco os corpos negros, pobres e transexuais.

A justiça brasileira, sob olhar do patriarcado, minimizou a violência cometida pelo abusador, e não obstante, cometeu violências adicionais como desrespeito e abuso psicológico.   

Por Márcia Eduarda

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