Quem tem medo da praça pública?

Crédito: Tom França

Na Bahia, a juventude está ocupando espaços públicos para promover visibilidade aos talentos locais e acesso à cultura para a periferia; conheça o Arte na Praça.

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Na noite de sábado do dia 15 de junho, mais de 100 pessoas se reuniam na praça José Ramos, um dos centros do bairro mais populoso de Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador. A maioria, jovem e negra, chegou aos poucos, convocada através das redes sociais e do boca a boca -uma verdadeira multidão no anfiteatro de menos de quinze metros quadrados onde se aglomeravam. De todos os lados das ruas movimentadas do largo, num mesmo passo descolado e altivo, vieram ver, ouvir, fazer e ocupar.

Depois de oito meses em hiato, voltava à Itinga, em sua 30ª edição, o projeto Arte na Praça, que oferece apresentações de teatro, música, poesia e dança através das performances de jovens e grupos locais – ou de outras periferias da região.

“A ideia é que se construa um contraponto cultural nas comunidade carentes. Hoje você não tem nada de atrativo pra quem é jovem aqui. As comunidades periféricas precisam de entretenimento, arte e lazer”, explica Reyynam Souza, ou Reyynam Poeta, um dos artistas e apoiadores da festa.

Apostando na gratuidade e sem estabelecer programação fixa, o evento mostrou desenvoltura e fôlego ao exibir mais de 15 performances ao longo de 2 horas, entre improvisos e colaborações. Alguns são artistas de coletivos, trabalham diariamente dentro dos ônibus levando poesia para as rotas metropolitanas; muitos são crias do bairro, alunos-frutos dos projetos de arte-educação da comunidade; outros são simplesmente prodigiosos adolescentes que, pela primeira vez, encontram espaço para compartilhar suas criações com o mundo.

A cada novo talento que se desgarra da plateia, Mateus Lopes, 21, puxa o coro leal de agradecimento: “3 palminhas e elxs arrasam”. Ele é um dos fundadores do projeto e o primeiro a encarar a plateia naquela noite. Além de convocar e convencer os artistas a se apresentarem, ele descontrai e entretém o público. “Existem muitas pessoas boas que cantam, escrevem, tocam e, a partir do evento, começaram a mostrar seu trabalho” contou à Revista Fraude, numa das edições em 2017.

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Larytsa Ramos é um desses exemplos. A dançarina de 18 anos, exibe, pela segunda vez, um solo de dança ao som do bloco afro do qual faz parte, o Afro Bankoma. Da mesma forma que se apresenta nos carnavais de Salvador junto ao grupo, a moradora de Itinga referencia o Candomblé e a cultura afro-brasileira através de trajes, movimentos e música.

Ao lado do cantor Caian Reis, 14, que também teve sua vez durante a noite, conta sobre a experiência. “[através do projeto] as pessoas do bairro podem conhecer a gente de uma forma melhor, conhecer quem a gente realmente é por dentro”. Caian diz ser um cantor de tudo, mas prefere o samba. Apesar da pouquíssima idade, afirma já se apresentar com um tio músico ao redor da cidade. Definitivamente o mais jovem artista da festa, foi aclamado por Mateus e pelos espectadores quando soltou a voz praticamente à capela.

Comparado aos saraus mais populares das quebradas de Salvador, o Arte na Praça é mais amplo e diverso. Nas redes sociais, declara-se uma mostra multicultural. Isso porque além das batalhas de rap e dos recitais de poesia – característicos do Sarau da Onça, em Sussuarana, ou do Slam das Minas, em Cabula – o arte dá espaço a uma multiplicidade de linguagens artísticas, do rap ao humor. Um reflexo da forte veia cultural da comunidade. “Tem muita gente talentosa, muita gente querendo fazer a diferença, estimulando e incentivando pessoas” explica Reyynam Souza.

Aos 23 anos ele é músico, compositor e produtor cultural. Desenvolve eventos artísticos desde os 16. Hoje, concilia um curso em logística pelas manhãs, um estágio em logística às noites, a venda de geladinhos nos coletivos e os seus dois projetos: o sarau Netos de Pedro Bala – que ocorre no centro de Lauro de Freitas – e a sua banda de mesmo nome.

A repetida referência à personagem de Jorge Amado, o subversivo menino de rua ‘Pedro Bala’, da obra Capitães de Areia, é emblemática não só das motivações do jovem compositor, mas também do tom politizado de todo o evento. Comuns à projetos culturais de bairros periféricos ao redor do país, discursos sobre afirmação racial, empoderamento, desestigmatização da periferia e desigualdades sociais, podem ser vistos com muita força no Arte na Praça. O engajamento está presente inclusive na estética, por meio de cabelos, roupas e pinturas de cores vibrantes que remetem à Geração Tombamento – o movimento dos millenials negros que buscam emancipação a partir da cultura, do corpo e das redes sociais.

Crédito: Tom França

Mas quem mora em Itinga sabe que a colorida e sonora praça José Ramos nem sempre se vê. No dia-a-dia, o local é ocupado por moradores de rua e marcado pela falta de iniciativas públicas: “Quase não tem nada aqui, na verdade a praça tá bem abandonada. O arte na praça é o único evento que rola”, apontam os estudantes Cláudio e Ágatha. A opinião é reforçada por metade dos jovens como Reyynam – “Aqui só tem bar e igreja” – e relativizada por outra metade, que afirma ainda frequentar o espaço nos fins de semana para encontrar amigos e beber.

Itinga concentra mais da metade da população de Lauro de Freitas, segundo dados de 2017 da Prefeitura Municipal. Como toda quebrada superpopulosa sofre com o crime organizado, de um lado, e com a presença repressiva das forças policiais, do outro. Na trincheira, o espaço público fica em xeque: “As praças [do bairro] são hoje espaços em que as pessoas que querem se divertir não conseguem por conta de um contexto de violência ou de uso excessivo de drogas” explica Eliete Teles, professora de teatro e umas das mais antigas agitadoras culturais da comunidade. Ao defender o seu afastamento do local, Reynnam ainda acrescenta: “Já rolou de estar conversando com um brother e só fato de estarmos os dois ali foi motivo pra uma abordagem policial totalmente hostil e agressiva”.

Porém, entre todos, parece haver um consenso: quando o arte começa, a ‘cara da praça’ muda. E isso não é em vão: “A gente começou fazendo aulas. Eram aulas de dança na praça em que também podíamos discutir a questão da ocupação daquele espaço; do espaço público”, conta Eliete. As aulas, que depois resultaram na mostra, faziam parte do Núcleo de Formação e Pesquisa em Artes Cênicas, do qual a professora foi coordenadora.

Entre 2015 e 2016, o núcleo ofereceu cursos de teatro, dança, cidadania, figurino e produção de moda para cem jovens em condições de vulnerabilidade do município, que tivessem idades entre 15 a 29. Realizado pela Associação Cultural Tupã (ACTU) – localizada em Itinga – e financiado pela Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS), por meio do edital Jovens Baianos, a proposta integrava um esforço do governo federal de ampliação dos direitos da juventude, desconstrução da cultura de violência e transformação de territórios com altos índices de homicídio.

Quando o projeto se encerra, parte dos jovens formados a decisão de dar continuidade às intervenções na praça, uma vez ao mês. Mateus Lopes estava entre eles. Ao longo de 3 anos, criam uma produtora chamada ‘Produart’, realizam umas das edições no bairro vizinho de Vida Nova, na praça Multicultural 8 de Março, chegam a pintar a José Ramos e estimulam uma prática de acolhimento aos moradores de rua que transitam pelo local.

“Para além de entretenimento, [a mostra] cumpre uma função social ao integrar uma comunidade que antes não se olhava, estava em casa por seus medos da violência nas manchetes, sabe”, defende Maria Campos, 20, poetisa, cofundadora e ex-aluna do núcleo. “A praça José Ramos era escura, ninguém se sentava lá além do ‘sindicato’ – homens moradores de rua ou que passavam as tardes ali bebendo. Agora todo mundo sabe que ali é uma praça de artes!”. Mesmo entre os comerciantes locais, a iniciativa parece ser bem recebida: “Admiro muito, é uma coisa família, quando tem o projeto eu vendo muito mais”, celebra Chris, dona da barraquinha de hot dogs que fica ao lado do anfiteatro.

Crédito: Yasmin/Itinga Rap

Se no começo a mostra chegou a receber apoios na forma de equipamentos, principalmente da ACTU e do teatro Eliete Teles (um importante espaço construído no bairro pela arte-educadora em 2016), hoje, está por conta própria. As entidades comunitárias afirmam nem sempre conseguir compartilhar materiais de som e luz, devido a limitações próprias. Atualmente, adotam uma postura mais voltada à observação e ao aconselhamento, incentivando um caminho de mais “autonomia dos meninos”.

Horas antes do início da 30º edição, com o largo ainda esvaziado, Mateus monta, sozinho, um varal de iluminação. As luzes vieram – dessa vez – do Teatro Escola Jorge Amado, onde estuda artes cênicas; a caixa de som foi cedida por Reyynam, e o computador, de onde saem as tracks que ditam todas as coreografias, partiu de um outro amigo apoiador. Todo o resto necessário para se ‘fazer acontecer’ vem da divulgação gratuita das redes sociais e do boca a boca.

Enquanto comentava sobre as correrias dos anos de produção, o longo varal de luzes emprestadas arrebenta e se espatifa no chão. “Ainda bem que temos mais!”, ele exclama. Por sorte havia uma caixa reserva das luzes coloridas, mas todas as que se espedaçaram teriam que ser restituídas ao teatro e varridas da praça antes das 19h. A ideia de um espaço cultural gratuito e público ainda é mantido – mas as circunstâncias já exigem que um chapéu de colaboração passeie pelo público em busca de contribuições.

O produtor diz já ter tentado auxílios. Em 2016, se inscreveu num edital do Conselho Municipal de Juventude. Não conseguiu aprovação pela falta de habilidade em adequar os documentos necessários às burocracias da proposta. Chegou a receber acenos da Secretaria Municipal de Cultura, mas também não deu certo.

Além disso, poucos dos jovens formados no núcleo ao lado de Mateus ainda estão engajados no evento – ou mesmo na produtora que construíram: “Eles falaram: ah, não me interessa mais, tenho outras coisas pra fazer. E assim, foi todo mundo. A partir de um, todo mundo começou a sair”, relata Maria, hoje também uma ex-integrante. O acúmulo de tarefas gerado pela debandada, somado a desentendimentos e à descoberta de uma gravidez no ano passado, culminou na saída da jovem poetisa e na isolada liderança de Mateus.

Em 2018, quando decidiu passar um tempo em São Paulo, ele foi, junto com alguns amigos apoiadores, a diversos bairros tentar formar um grupo que desse continuidade à realização do arte. Segundo Reyynam, sem sucesso. Quando volta, depois de 8 meses e de muitas mensagens de cobrança sobre o projeto, decide alegrar, mais uma vez, a sua comunidade.

Mateus faz isso aos 21 anos de idade enquanto aprende a ser pai, trabalha produzindo pallets e estuda. Desde os 8 anos de idade envolvido com teatro, graças à Eliete e à associação cultural do bairro, parece o perfeito exemplo de uma experiência comunitária arte-educadora. Em algum ponto da frenética noite periférica, com os pés descalços em meio a insistentes rastros de vidro, ele dispara:

“Vocês perceberam que nem notaram o barulho dos carros e das motos?

Esse é o poder da poesia!”.