Quarta onda da pandemia: como pacientes do SUS estão se tratando?

Pacientes encontram dificuldades em acessar o tratamento a distância - Foto: Justin Paget/Getty Images

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), quase um bilhão de pessoas vive com transtorno mental, três milhões morrem todos os anos devido ao uso nocivo de álcool e uma comete suicídio a cada 40 segundos. E agora, bilhões de pessoas em todo o mundo foram afetadas pela pandemia da Covid-19 que está causando um impacto adicional à saúde mental.

“A impressão que tenho é que a quarta onda já chegou no Brasil e que não veio separada das outras, ela foi acontecendo concomitantemente”, afirma a psiquiatra Larissa Harada. Ela explica que esse termo se refere ao aumento dos casos de transtorno mental decorrentes da própria pandemia, realidade que observa em unidades públicas de saúde onde trabalha na cidade de São Paulo.

Para Maria da Silva Santos, 50 anos, moradora da favela Mauro 2, região Sudeste de São Paulo, a dor de ter perdido pessoas próximas para a Covid-19, o medo de ver suas filhas adoecerem e o risco de perder o emprego agravaram as crises de depressão que ela trata há mais de 20 anos. “Foi difícil administrar as crises de pânico. Tive três fortes de não querer ficar em casa, sensação de sufocamento e só pensava em morrer. Nada tinha solução”, comenta.

A psiquiatra Larissa explica que a vulnerabilidade e questões como perda do emprego, falta de condições mínimas de vida e perda de vínculos são fatores de risco para o adoecimento mental. Com a pandemia, esses efeitos ficaram sobrecarregados.

A especialista também chama atenção para a dificuldade dos pais em lidar com os filhos e o aumento da violência doméstica. “As crianças da periferia têm dificuldade no acesso à escola de forma on-line e podemos perceber muita queixa de alteração de comportamento que os pais não conseguem lidar”.

Dayane de Lucca- Foto: Arquivo Pessoal

Dayane de Lucca, 29 anos, moradora da favela Mauro 1, região Sudeste de São Paulo, já tinha sido diagnosticada com transtorno de ansiedade antes da pandemia, mas os sintomas se acentuaram durante a quarentena. “Tive crises por ficar trancada em casa com meus filhos pequenos. Só chorava e me sentia muito mal. Tive uma crise mais forte e acabei cortando o meu cabelo na impulsividade”, comenta.

Josefa Paula Maria de Oliveira, 32 anos, moradora da favela Mauro 2, saiu do emprego de garçonete para cuidar da filha de um ano e de Enzo, de três, que tem diagnóstico de autismo. Ela observa que ele sente falta do contato e brincadeira com os colegas de creche, mas que tem ficado bem nesse período por estar junto dela.

Em nota, o Ministério da Saúde aponta para as “Ações de Educação em Saúde em Defesa da Vida”, lançadas pela Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. As ações abordam temáticas relativas ao uso de drogas lícitas e ilícitas e ética da vida. O primeiro ciclo realiza atividades voltadas à prevenção ao suicídio e a automutilação a partir do Setembro Amarelo.

Teleatendimento auxilia acompanhamento de pacientes de saúde mental pelo SUS 

Segundo Larissa Harada, com tratamentos interrompidos ainda no começo da pandemia, muitos pacientes atendidos pelo SUS ficaram desassistidos, gerando uma piora nos casos mais crônicos. “Fomos criando estratégias para lidar com a situação do isolamento, mas sem deixar de prestar atendimento devido a esses pacientes” explica a psiquiatra.

Foi o que ocorreu com Selma Souza Figueiredo, 48 anos, moradora da favela do Vila Clara, que tem diagnóstico de esquizofrenia. Ela era acompanhada três vezes por semana no Centro de Atenção Psicossocial (Caps Adulto) no bairro do Jabaquara. Os grupos que participava pararam, mas ela continuou fazendo consulta por telefone. Os atendimentos presenciais voltaram a acontecer recentemente. “Na pandemia, me sinto muito sozinha, muito isolada. As consultas por telefone que estão me ajudando”, declara.

Enzo e sua mãe, Josefa Paula – Foto: Arquivo Pessoal

Para Josefa Paula Maria de Oliveira, as orientações por telefone foram de extrema importância para o cuidado com o filho no auge do isolamento. “Ele foi diagnosticado com autismo no início do ano e ia começar o acompanhamento no serviço, mas logo veio a pandemia, então eles começaram atendendo a distância e agora com algumas consultas presenciais também”, esclarece.

A psiquiatra Larissa Harada avalia o teleatendimento implantado pelos serviços como uma medida positiva no início da quarentena, porém, com o aumento da demanda e da gravidade dos casos, essa modalidade foi ficando insuficiente. “Interromper um tratamento em saúde mental muitas vezes pode ter mais risco para um paciente do que uma possível contaminação pela Covid-19”, acrescenta.

Maria, que é atendida por um posto de saúde da zona sul de São Paulo, comenta que teve dificuldade no contato telefônico. “A psiquiatra tentou contato comigo, mas não conseguiu, pois dentro da minha casa não tem conexão de celular”.

Atendimento presencial nas unidades públicas de saúde

Larissa, que atua também na rede privada, compara aspectos que interferem na qualidade da consulta entre os setores público e privado. Ela afirma que no consultório particular as consultas presenciais e por vídeo conseguem ser intercaladas. Além disso, a maioria dos pacientes têm acesso a internet de qualidade e um celular com boa câmera.

Psiquiatra Larissa Harada – Foto: Arquivo Pessoal

No SUS, a especialista fala que as salas costumam ter pouca iluminação e ventilação, além de não serem higienizadas adequadamente entre uma consulta e outra. “Chegamos a doar máscaras e outros aparatos de higiene para que os pacientes fiquem protegidos, pois em alguns momentos somos o único suporte a quem eles podem recorrer”.

Dayane e Maria acreditam que o setor público não está preparado para a grande demanda em saúde mental. Ambas aguardam consulta de psicologia e psiquiatra, respectivamente, pelo posto. Elas elogiam o atendimento dos profissionais, mas criticam a escassez de especialistas para lidar com a quantidade de pessoas graves, a carência de recursos do SUS e a falta de medicação.

“O clonazepan estava em falta, e eu tive que comprar, senão não fico bem”, comenta Maria. “Eu não fiquei muito bem no início da pandemia porque a olanzapina acabou e é muito importante para a esquizofrenia. Comecei a ouvir vozes e ver coisas”, relata Selma que ficou cinco dias sem a medicação até conseguir trocar a receita para uma dosagem disponível no SUS.

Em nota, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), afirma que a distribuição de medicamentos está organizada para facilitar e garantir o acesso aos remédios necessários. Ainda segundo o órgão, todas as Unidades Básicas de Saúde (UBS) do município podem acolher, tratar transtornos mentais leves a moderados e contar com apoio de profissionais de saúde mental de referência, via Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) ou via regulação.

Segundo Larissa, o atendimento no Caps consegue ser mais integral do que no Nasf, pois possuem mais psicólogos, psiquiatras e uma equipe multiprofissional mais completa. Porém, ela afirma que a demanda é muito grande e que acabam cuidando apenas dos casos mais graves. “Os intermediários muitas vezes não chegam na atenção primária e nem ao serviço especializado e acabam ficando sem o cuidado necessário”.

Além disso, a especialista aponta que houve dificuldade no encaminhamento para estes centros. O receio de transmissão e contaminação pela Covid-19 e pelo adoecimento de alguns trabalhadores causou afastamentos e quase acarretou no fechamento dos serviços.

Organização Mundial da Saúde recomenda investimento em saúde mental

Um relatório de 2015 da Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que apenas 1% da força de trabalho em saúde no mundo é voltada para saúde mental. Desse valor, apenas 8% dos profissionais são psiquiatras, 7% são psicólogos, 3% assistentes sociais e 1,5% terapeutas ocupacionais. Outro dado relevante é que 45% da população do mundo vive em um país com menos de um psiquiatra para cada 100 mil pessoas.

Neste sábado (10), é comemorado o Dia Mundial da Saúde Mental. Órgãos como a OMS e a Organização das Nações Unidas (ONU) têm destacado a necessidade urgente de se aumentar os investimentos em saúde mental. “A ampliação e reorganização dos serviços de saúde mental que agora são necessários em escala global é uma oportunidade para construir um sistema de saúde mental adequado para o futuro”, disse Dévora Kestel, diretora do Departamento de Saúde Mental e Uso de Substâncias da OMS, em relatório da OPAS de 14 de maio de 2020.

Considerando a declaração de emergência em Saúde Pública pela OMS em decorrência da Infecção Humana pelo novo coronavírus, o Ministério da Saúde lançou a portaria n° 2.516 de 21 de setembro de 2020, que dispõe de R$ 650 milhões para a aquisição de medicamentos utilizados no âmbito da saúde mental. Baseado no Índice de Desenvolvimento Humano por Município (IDHM), o valor de repasse para localidades com o IDHM muito baixo é de apenas R$ 3,14 por habitante.

Em nota, o Ministério da Saúde informa que em 2020 foram investidos no país R$ 1,1 milhão para ampliação dos serviços de atendimento à saúde mental. A iniciativa incentivou a abertura de 24 novos CAPS; 11 Serviços de Residência Terapêutica; uma Unidade de Acolhimento Infanto-Juventil e 40 novos leitos de saúde mental em hospital geral; além de habilitar 21 Equipes Multiprofissionais de Atenção Especializada de Saúde Mental para atendimento ambulatorial.

Esta matéria foi produzida com apoio do Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo do Google News Initiative.

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