Quando chegará o dia em que a morte de corpos negros não será mais notícia do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro?

Mais de 30 anos depois e as histórias de violência em áreas periféricas ainda se repetem.

Ato contra a chacina do Jacarezinho _ foto: Marcella Saraceni

O mês de julho trouxe para muitos brasileiros sentimentos de dor e tristeza, oriundos de lembranças que não somem de suas memórias, com datas que marcam acontecimentos traumáticos de violência contra a população negra, em situação e rua e moradores de favelas. Esses fatos, que dado a gravidade, não deviam ser esquecidos por ninguém, infelizmente só são relembrados por quem sente na pele a opressão e a continuidade da política genocida. 

Como um jornal que retrata o cotidiano de territórios periféricos, as datas são marcantes também para o A Voz da Favela, que não só as relembra, mas diante da violência sofrida por tantas famílias, no passado e nos dias atuais, questiona até quando e por que essa política, que deveria ser extinta, ainda é tão presente no Rio de Janeiro.  

26 de julho de 1990: Chacina de Acari. 11 jovens mortos, sendo sete menores de idade, os “Onze de Acari’, como ficaram conhecidos esses moradores da favela de Acari. De acordo com investigações da época, foram retirados de um sítio, em Magé, na Baixada Fluminense, por homens que se identificaram como policiais. Seus corpos até hoje não foram encontrados e o inquérito foi encerrado em 2010, sem que ninguém fosse indiciado pelo crime. Sem respostas para o paradeiro de seus filhos, formou-se o grupo as Mães de Acari, que se mobilizaram e investigaram o caso por conta própria. Edméia da Silva Euzébio, uma das mães empenhadas na luta por justiça, foi assassinada quando buscava informações sobre o paradeiro do filho, Luiz Henrique da Silva Euzébio. Segundo a ONG, o processo sobre a morte de Edméia continua em primeira instância na Justiça.

23 de julho de 1993: Chacina da Candelária. Seis menores e dois adultos mortos. Diversas crianças e adolescentes feridos. Eles dormiam nos arredores da Igreja da Candelária, no Centro do Rio, quando homens armados atiraram, promovendo um massacre que chocou o mundo. Wagner dos Santos, um dos sobreviventes o responsável pelo relato que garantiu a identificação e prisão de quatro envolvidos no crime, três deles policiais militares, que foram condenados, cada um, a penas que somavam mais de 200 anos de prisão. No entanto, todos foram soltos antes de cumprirem 20 anos de reclusão.

14 de julho de 2013: Caso Amarildo. O pedreiro e morador da Rocinha desapareceu após ser levado por policiais da UPP para prestar depoimento. Em 2021 o major condenado por tortura e morte do pedreiro foi reintegrado aos quadros da Polícia Militar. Leandro Resende, jornalista, sociólogo e autor do livro “Cadê o Amarildo? O desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPS”, lançado em 2019, em entrevista ao A Voz da Favela, relatou: “O livro não é uma investigação jornalística, mas uma indagação sobre o desaparecimento do pedreiro, morador da favela da Rocinha, uma pessoa que na maioria das vezes não é vista, e sim negligenciada pela sociedade. Mas, que devido a uma “operacionalização” direta voltada para uma “guerra” travada entre comunidade, tráfico e política de segurança pública, reverbera até hoje”.

Leandro explicou que, dentro da nossa sociedade, quando pessoas negras morrem, criam-se argumentos para suas mortes. “No caso do Amarildo, estabeleceram uma ligação com o tráfico de drogas. Uma ligação falsa, inexistente, mas que é uma narrativa que até hoje é questionada. Ou seja: apesar de não ser verdadeira, se estabelece, fica marcada na história”, afirmou o sociólogo.

Em um ano em que, devido à falta de planejamento para a compra de vacinas e estruturação de atendimento hospitalar, o Brasil tornou-se um país com mais de 500 mil mortes por causa da Covid-19, a capital carioca ainda vive uma nova onda de violência nas favelas, que não para de proliferar. 

Em 2021, ações policiais desastrosas e mortíferas se repetem, e em menos de dois meses ocasionaram, em maio, a operação mais letal da história: a Chacina do Jacarezinho, em que 28 moradores foram mortos, num banho de sangue, com corpos arrastados pelas ruas e até hoje uma série de perguntas ainda estão sem respostas; e em junho, dois assassinatos dos jovens –  Kathlen Romeu, grávida de 14 semanas, morta durante operação policial no Complexo do Lins, no dia 8; e Thiago da Conceição, 16 anos, baleado na cabeça, em casa, morto no Morro da Fé, Complexo da Penha, 10 dias depois. 

Casos constantes, de extrema violência policial, que chocam e emocionam apenas quando são noticiados, mas que sem a devida investigação e sem terem seus autores punidos, acabam naturalizados por boa parte da sociedade.

“São indivíduos negros, de origem humilde, vítimas de crimes bárbaros que sofrem o mesmo processo de deslegitimação de seu caráter e honras. Como justificar a morte dessas pessoas somente por viverem em favelas, e como o Brasil não consegue controlar situações tão horríveis como essas?, analisou Leandro Rezende, durante a entrevista, realizada antes da morte de Thiago. 

 De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), negros são três vezes mais vitimados por homicídios do que brancos. Esse número aumenta gradativamente à medida em que se acrescenta recortes de gênero, classe e orientação sexual. 

Há de ser levado em consideração que esses são os números com bases nas mortes que são registradas. 

Nenhum jornalista com consciência e responsabilidade social se sente motivado a publicar matérias que contem repetidamente a morte de negros, moradores de periferias, mulheres, LGBTQIA+, e ainda sim são essas as pautas recorrentes nos últimos tempos. A razão é a necessidade de denúncia, de registro, contra essa naturalização do dilaceramento de famílias pobres e pretas, que sofrem todos os dias com a necropolítica (na qual se decreta como algumas pessoas podem viver e como outras devem morrer) instalada na cidade. Até que essas vidas não sejam subjugadas, e que as pessoas não precisem lutar pelo direito de viver. Até que haja justiça e reparação histórica. 

matéria escrita em colaboração com Marcella Saraceni e Juliana Moraes na edição de Julho do jornal A Voz da Favela

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