Pessoas trans reclamam de atendimento de saúde nas periferias de Salvador

“Fui numa consulta no ginecológica, mas a médica não me atendeu, disse que era contra a forma dela trabalhar. Aquilo me corroeu por dentro e eu não consegui reagir”, conta Junior Silva, 26 anos, homem transgênero, que ainda enfatizou a exposição constrangedora sofrida.

Junior é formado em Logística, mora em Cajazeiras, conjunto habitacional de Salvador. Começou a transição em 2013 e a família aceitou, dedicando-lhe comportamento suave e amoroso, entendo e reconhecendo uma pessoa trans. Muito diferente do que aconteceu na relação com a médica.

Aceito em casa, fora dela as dificuldades são sempre maiores. Alguns amigos se distanciaram, outros se aproximaram. Com o passar do tempo, passa a perceber que precisa ter ao lado pessoas que entendam sua condição. Por isso o atendimento médico foi tão traumatizante.

Constrangimento parecido sofreu Hannah Figueira, 23 anos, mulher trans. Ela fala da dificuldade em ser atendida em consultas no urologista, e em como os olhares a fizeram se sentir insegura.

“Eles não te enxergam como uma pessoa, eles inibem qualquer existência sua como um ser humano e todos os olhares só tem um destino, que você tem entre as pernas”.

Hannah Figueira, diz: “eles inibem qualquer existência sua como um ser humano”: FOTO: Arquivo pessoal

Hannah é estudante de Arquitetura, mora no bairro Pernambués, em Salvador. Começou a transição em 2018, quando se entendeu como pessoa trans, e começou a ter contatos com pessoas na mesma condição.

De início, a família não via a transição positivamente, mas com muito diálogo conseguiu ter o apoio dos pais. Ela sempre teve o apoio dos amigos, e hoje familiares e pessoas próximas lutam pelas causas que dizem respeito a ela.

O publicitário Pedro Schenk, 23 anos, mora no bairro Pernambués, Salvador, e por ser uma pessoa trans também passou por momentos constrangedores. Pedro deu início a sua transição em 2017, mas começou sua terapia hormonal em julho de 2022.

“Certa vez eu fui no endocrinologista particular que não quis me atender por ser uma pessoa trans, eu esperei 1h para poder entrar no consultório e o cara falou que não atendia pessoas como eu e simplesmente não quis me atender”, disse o publicitário.

Pedro Schenk passou por momentos constrangedores ao procurar atendimento de saúde. FOTO: Arquivo pessoal

Pedro utiliza hormônios e quando precisa vai no Ambulatório Prof. Francisco de Magalhães Neto, e pega na farmácia pelo SUS.

Junior viveu sua experiência traumática numa consulta particular, Hannah e Pedro sempre percebem o preconceito quando vão às unidades do Sistema Único de Saúde (SUS). Vivenciaram realidades parecidas nas periferias onde moram, mas não denunciaram. Hannah, acha que não daria em nada; Júnior e Pedro nem pensaram na hipótese.

As dificuldades relatadas mostram a importância da qualificação humanizada dos profissionais de saúde, assim como melhorias nos sistemas público e privado, além de maior rigor da lei em práticas de discriminação e falta de respeito com as pessoas trans.

Atendimento de saúde: quando Junior, Hannah e Pedro se encontram

A falta de políticas públicas contribui com a exclusão de pessoas, fazendo com que o preconceito seja visto por alguns com normalidade. A ativista das causas LGBTQIAP+, Jurema Trindade, diz que “o sistema é falho e não se importa em modificar as barreiras para as pessoas trans, oportunizando o acesso aos serviços especificamente públicos, que são delas por direito como cidadãos”.

Jurema tem 29 anos, mora em Itapuã, tem formação em Recursos Humanos, não está vinculada a nenhum coletivo, mas vai protestar onde vê injustiça com as pessoas LGBTQIAPN+.

Mesmo com o SUS oferecendo procedimentos com harmonização, cirurgias de modificação corporal e genital para pessoas transgêneros, a dificuldade de acesso a esses sistemas continuam difíceis. Isso inclui também a recusa em examinar e negação do nome social.

A discriminação em ser vistas e vistos como realmente são, dificulta a busca das pessoas pelos serviços de saúde por conta do medo e rejeição, principalmente pelo fato de, em geral, virem de lares extremamente preconceituosos, o que acaba sendo um agravante para a saúde mental.

Despreparo dos profissionais de saúde

A falta de conhecimento e cuidado por parte de alguns profissionais de saúde no atendimento de serviços específicos para pessoas trans tem início na própria formação acadêmica.

Elas são conduzidas e frequentadas por pessoas majoritariamente cisgênero, excluindo não só pessoas trans, mas travestis e não binárias.

A profissional de saúde Carla Santos tem 33 anos e atua na área há sete. Ela mora no bairro de São Rafael, atuando na unidade básica de saúde da Sussuarana, destaca que a falta de discussões sobre saúde para pessoas trans tanto dentro e fora do âmbito acadêmico acaba distanciando a sociedade dessa pauta importante.

Carla Santos, profissional de saúde, sabe o quanto ainda falta para melhorar o atendimento. FOTO: Arquivo pessoal

“É preciso reconhecer que existe um desconhecimento por parte de alguns profissionais de saúde com relação ao público trans, e é preciso que nós saibamos quais são as suas necessidades e compreende-las, enxergando o corpo trans como deve realmente ser enxergado”, disse Santos.

Tentativas de combater o preconceito contra trans

Em Salvador, o Observatório da Discriminação Racial e LGBT, Violência contra Mulher tem a missão de prevenir e combater discriminações e desigualdades. Em especial de gênero, raça e identidade sexual. A proposta é construir indicadores que sejam utilizados como subsídios para a formulação e implantação de políticas públicas.

Em evento para promover mutirão de saúde da população trans, a vice-prefeita e secretária de Saúde de Salvador, Ana Paula Matos, ressalta que a importância da inclusão desse público no cuidado com a saúde integral.

“A saúde é um direito de todas as pessoas, e oportunizar esse acesso é garantir condições de vida e bem-estar. A população trans, historicamente, enfrenta situações de violência, estigma e preconceito. Infelizmente, esses fatores são impeditivos, para que, muitas vezes, essas pessoas procurem as unidades de saúde”.

Ela promete trabalhar a favor de políticas públicas de acolhimento, para que haja o atendimento adequado, com respeito e dignidade, conhecendo as demandas de atendimento específico a partir das diversas identidades de gênero.

O técnico do Campo Temático Saúde da População LGBT da Secretaria Municipal de Saúde, Erik Abade, destaca. “Queremos acolher o máximo de pessoas trans que necessitam desses cuidados e serviços, além de estreitarmos os laços, e compreendermos juntos a elas e eles as necessidades insurgentes que apresentam”.

Em 2021, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT) completou 10 anos, com diversos transtornos para a inclusão dessa população.

Locais de atendimento em Salvador

O Centro de Promoção e Defesa dos Direitos LGBTQIAPN+ (CPDD-LGBT) atua com o atendimento pedagógico, psicológico, social e presta acompanhamento jurídico para a retificação do nome social, no Casarão da Diversidade, em Salvador, de segunda a sexta-feira, das 8:30 às 17h.

Outro local é a casa do acolhimento para pessoas LGBTQIAPN+ oferece de forma gratuita suporte de advogados, psicólogos e assistentes sociais. A casa que leva o nome Casinha Marielle Franco, coordenada pela ativista Sandra Munóz, foi reaberta em 2022. Fica localizada no bairro Campo Grande, em Salvador. Funciona todos os dias, 24 horas.

Há ainda o Centro Municipal de Referência LGBTQIA+ Vida Bruno, nome do historiador e primeiro coordenador do serviço, em 2016. Localizado no Rio Vermelho, em Salvador, e consta com serviços sociais, psicológicos e jurídicos, de segunda a sexta, das 9h às 16h.

Em janeiro desse ano, a prefeitura de Salvador resolveu dar destaque para as mulheres trans e travestis. Foram feitos diversos procedimentos e exames contra HIV e outras ISTs, com médicos qualificados em saúde para a população LGBTQIAPN+.

Raissa Ramos

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Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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