A Movimentos, organização de jovens favelados e periféricos que usa a educação, a comunicação e a arte para combater o racismo, as agressões e as desigualdades nas favelas, lança a pesquisa inédita Plantando saúde e reparação: o uso terapêutico da maconha nas favelas do Rio de Janeiro.

O levantamento, realizado em dezembro de 2022 com moradores de favelas cariocas – especialmente Cidade de Deus e os Complexos da Maré e do Alemão -, traz o perfil de quem faz uso terapêutico da maconha e de quem deseja acessar os benefícios terapêuticos da substância.

Com dados que dão rosto a esses usuários, o estudo identificou as principais questões de saúde tratadas com a maconha, as formas de uso, o exaustivo caminho que moradores de favelas e periferias precisam percorrer para ter acesso à substância e as dificuldades que se apresentam a essas pessoas.

Uso terapêutico existe faz tempo

Aristênio Gomes, um dos pesquisadores do estudo, chama a atenção para a urgência de produzir dados que subsidiem políticas públicas sobre o tema. “O uso terapêutico da maconha já é realidade nas favelas. Muitas pessoas têm buscado o alívio de sintomas para várias doenças. Há diversos estudos que atestam o potencial terapêutico dessa substância e seus derivados, mas ainda assim, na favela, as pessoas dependem principalmente da ajuda de organizações não governamentais e doações para ter acesso à saúde”.

Segundo Gomes, “garantir esse acesso é dever do Estado. Essa pesquisa vem para trazer um diagnóstico dessa realidade e mostrar que precisamos de políticas públicas que garantam que pessoas em sofrimento consigam aliviar suas dores de maneira segura e gratuita”.

Perfil dos pesquisados

O perfil dos respondentes é de pessoas negras (73,3%), com renda mensal de menos de um salário-mínimo (60%) e que recebem algum tipo de benefício social do governo (58%).

Sobre a identificação religiosa dos que participaram da pesquisa, 32,38% afirmam não ter uma prática religiosa, mas não declaram ser ateus. Chama a atenção o percentual de evangélicos (27,62%) e de católicos (23,81%), uma vez que muitas religiões têm uma visão moralista sobre o tema e condenam o uso de qualquer tipo de substância psicoativa.

Ricos têm acesso; pobres, pretos e favelados, não

De forma geral, a maioria dos respondentes é composta por pais e mães de pessoas que fazem ou desejam fazer o uso (65,7%), ou seja, são sujeitos que têm ou buscam acesso à substância para manter tratamento de saúde de seus filhos ou familiares.

Jéssica Souto, coordenadora da pesquisa, aponta para a crueldade da criminalização dessas famílias. “Enquanto pessoas brancas ricas e de classe média garantem uma melhor qualidade de vida para os seus filhos com acompanhamento médico, amparo judicial e informação, famílias pretas e moradoras de favela enfrentam diversas barreiras para conseguir essa substância”.

Ainda segundo ela, “essas famílias convivem constantemente com o medo da criminalização, violência e repressão associadas ao uso. Nem mesmo quando recebem prescrição médica as pessoas estão a salvo da violência estatal”, reforça.

Sobre as condições de saúde tratadas com a maconha e seus derivados, as mais mencionadas foram o transtorno do espectro autista (52,2%), seguido pela epilepsia (12,39%), sintomas de ansiedade (12,39%), sintomas de depressão (7%) e dores (5%).

Formas de uso terapêutico da maconha

Dentre os moradores de favela que fazem uso terapêutico da maconha e participaram do estudo, a maioria o faz através do óleo (60%) e do cigarro (18%).

Apesar de ter se popularizado nos últimos anos, ainda há muito estigma quando o assunto é o uso terapêutico da cannabis. O relatório aponta que 42% das pessoas ouvidas afirmaram já ter sofrido preconceito por fazer uso ou por tentar acessar a maconha para fins terapêuticos.

E quem faz uso do cigarro de maconha sofre uma violência ainda maior: 78,9% das pessoas disseram já ter sofrido algum tipo de preconceito.

Os usuários do óleo de maconha são os que menos sofrem repressão, apenas 31,7% informam ter sido submetidos a algum tipo de preconceito.

É preciso quebrar barreiras

Ricardo Fernandes, um dos pesquisadores, revela que, mesmo com o preconceito, moradores de favela querem desestigmatizar o uso da maconha. “Em geral, as pessoas afirmaram não ter vergonha de falar que fazem uso terapêutico da maconha. Muitas acreditam que, ao tocarem no assunto, ajudam a compartilhar informações e combater o preconceito relacionado à substância. Falar abertamente sobre o uso terapêutico e as dificuldades que enfrentam para ter acesso a ele é uma forma de quebrar barreiras“.

Sobre a forma com que as pessoas moradoras das favelas da cidade do Rio de Janeiro conheceram o uso terapêutico da maconha, a maioria afirmou ter tomado conhecimento através de parentes, amigos ou vizinhos (40%), demonstrando que o tema tem se tornado cada vez mais popular.

Em seguida, as respostas foram através da internet (32%), por indicação médica (13%), através de organização não-governamental (8%) e através da televisão (3%).

Gastos mensais e investimento financeiro

A maioria dos respondentes, ou o equivalente a 68%, afirmou ter algum gasto com a substância.

22% afirmaram gastar de 201 a 300 reais por mês;

17%, de 101 a 200 reais;

12%, até 100 reais;

8%, de 301 a 400 reais;

5% entre 401 a 800 reais.

Poucos (4%) gastam 1 mil reais ou mais por mês.

Por outro lado, 32% afirmaram não ter gastos e a explicação é que muitos respondentes são assistidos por organizações não governamentais que atuam em favelas e periferias e conseguem substâncias derivadas da maconha através de doações.

Óleo de maconha

Dentre as pessoas que declararam fazer uso do óleo, a maioria (84%) só experimentou um tipo do composto. O canabinoide mais mencionado foi o canabidiol (69%), seguido pelo THC (15%).

A maioria dos que fazem uso do óleo no contexto das favelas do Rio de Janeiro conseguiu o produto através de doações (52%). Organizações não governamentais diversas atuam ativamente nestes territórios para viabilizar a doação dos produtos e facilitar o processo burocrático de acesso à substância.

Insegurança nas favelas

A insegurança em fazer uso de uma substância tão criminalizada também foi um dos temas da pesquisa. Entre os que guardam em casa maconha ou substâncias derivadas, 55,2% dizem sentirem-se seguros. Mas para 38,1% nem o uso restrito ao ambiente doméstico é capaz de tranquilizá-los.

Alguns participantes afirmaram que usar o óleo da maconha – e não outra forma de uso – e ter prescrição médica e/ou autorização judicial para tal são fatores que os fazem sentir mais seguros.

Outros, no entanto, afirmaram ter medo mesmo em posse dos documentos que autorizam a medicação.

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