Pandemia escancara a realidade da educação especial no Rio de Janeiro

Miguel realiza atividades enviadas semanalmente pela escola - Foto: Arquivo pessoal

De acordo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei Nº 13.146), é direito da criança com incapacidades, desde o ano de 2016, frequentar classes regulares das escolas com adaptações para que tenham eficiência de aprendizagem. Por conta da pandemia do novo coronavírus, as aulas presenciais estão suspensas desde março. Esta situação dificultou ainda mais que alunos autistas da rede pública de ensino do Rio de Janeiro recebessem um ensino adequado. 

“O autismo afeta os processos cognitivos no que diz respeito ao processamento das informações, aprendizagem, raciocínio lógico, tomada de decisões e linguagem. Por isso, é bem provável que uma criança com o transtorno tenha dificuldades de aprender pelo ensino on-line”, explica Bruna Romano, fonoaudióloga do Centro Especializado em Reabilitação IV (CER IV) da prefeitura de Duque de Caxias. 

Izabel Cristina Nascimento, 30, é mãe de uma menina autista. Giovanna tem oito anos e está matriculada no segundo ano do ensino fundamental da rede pública do Rio. Para Izabel, que está desempregada e dedica seus dias em casa para estimular a filha, a maior dificuldade está em socializar a menina. “Ela está esse tempo todo sem ver os professores e coleguinhas. O mediador, que é um estagiário da prefeitura, só mandou vídeo para ela uma vez”, conta.

Além da dificuldade de manter o vínculo com a comunidade escolar, Giovanna, que de acordo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência tem direito a material adaptado, recebeu  da escola apostilas com atividades passadas para os demais alunos, sem qualquer alteração. “A apostila da prefeitura não é adaptada para a deficiência dela. Não adianta vir com um monte de instruções escritas, é preciso ter muitas ilustrações para que ela compreenda o que é preciso fazer. A nossa sorte é que os profissionais da escola fizeram algo diferenciado para ela”, diz Izabel.

Giovanna é aluna da rede municipal de ensino do Rio – Foto: Arquivo Pessoal

Especialista em adaptação de material pedagógico para crianças autistas, a psicopedagoga Anik Elisbon destaca que é necessário ambiente, profissionais e materiais adequados para que a criança autista não perca o interesse. “Trabalhar com materiais adaptados para as escolas requer custo. Mas apenas com profissionais capacitados e esses materiais que é possível identificar as dificuldades e aproveitar melhor as oportunidades de aprendizagem de cada um”, explica.

Natalice Silva de Jesus, 28, também relata o distanciamento da escola para com o filho autista de quatro anos, aluno do segundo ano da pré-escola. “Ele não está tendo aulas remotas, nem qualquer contato com professores. O único material que peguei esse mês, não consegui utilizar. Sem a ajuda de um mediador para dar suporte, ele não se concentra”, conta. O mediador escolar é um profissional especializado em adaptar o plano pedagógico de ensino regular de acordo com as necessidades especiais do aluno. Apesar de ser um direito da criança com deficiência matriculada no ensino público ser acompanhada por esse profissional, são poucos os que têm esse benefício na prática. “A maioria dos meus pacientes é oriunda das escolas da rede pública. Alguns têm o auxílio do mediador, outros seguem sem. Em teoria, o modelo de ensino deveria atender às demandas de inclusão dessas crianças, porém, na realidade, não é o que ocorre”, relata a fonoaudióloga Bruna Romano.

O Projeto de Lei 593/2017 visa garantir o direito dos alunos com deficiência no município do Rio. Um dos pontos centrais é a garantia de profissionais qualificados e continuamente capacitados para atendê-los. No entanto, não é o que se observa na rotina escolar. Para Gabrielle Pontes, mãe de um menino com esta condição e fundadora da “Casa de Autista”, rede de compartilhamento entre famílias, a inclusão na educação brasileira é uma utopia que se evidencia ainda mais nesse período de suspensão das aulas. “Existe muita desinformação sobre o transtorno, inclusive nas escolas. Os professores não sabem o que é e consequentemente não sabem lidar”, enfatiza.

A dificuldade de concentração é uma das características marcantes da criança dentro do espectro autista, o que torna ainda mais complicada a dinâmica das aulas remotas. Com um filho de seis anos diagnosticado com o transtorno e matriculado no segundo ano da pré-escola da rede pública, Sthefany de Araújo Silva, 25, conta que as poucas aulas on-line que foram disponibilizadas não funcionaram para o menino. “Ele não consegue ficar parado prestando atenção no celular. A escola fez um grupo de WhatsApp para passar atividades, mas elas são iguais as das outras crianças, sem nenhuma adaptação”, explica.

Os dados em relação ao autismo no Brasil são mínimos, tanto que a obrigatoriedade de inclusão de informações específicas sobre pessoas com o transtorno nos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) só foi sancionada em lei em 2019. No mesmo ano, o censo escolar do estado do Rio de Janeiro, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), registrou 74.928 crianças especiais matriculadas na rede de ensino pública, sem no entanto especificar as deficiências. Em nível municipal, o Instituto Helena Antipoff (IHA), órgão da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, responsável pela implementação das ações de educação especial e inclusiva, contabiliza 6.149 crianças dentro do espectro autista matriculados em escolas da prefeitura. 

Até o fechamento da reportagem, não houve retorno da Prefeitura do Rio para comentar as situações relatadas pelas famílias entrevistadas.

Esta matéria foi produzida com apoio do Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo do Google News Initiative.

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