O Sol na cabeça

Todo dia é um frio na espinha, como se a cada passo dado eu já imaginasse uma bala atravessando meu corpo.

A sensação está ali, todo dia, até mesmo antes de dormir. Os pesadelos de que qualquer dia desses um pipoco ainda vaza meu quarto, que é praticamente no meio da rua, chegam em sequência a cada sono mal dormido. Sem muros de proteção, sem câmera de segurança e sem sermos vistos, seguimos tentando não naturalizar mas sabendo que é preciso se adaptar.

Acordei no feriado e percebi, após uma madrugada de tiros e granadas, que a falta de perspectiva havia me atingido em cheio. Era só olhar para o lado. Aqui não tem holofotes de TV, não tem microfone, não existem imersões culturais sediadas por grandes empresas ou marcas de cabelo que se interessem pelas meninas que influenciam o território. Tem os novos funkeiros, mas esses seguem na mesma linha de muitos que vieram antes e cada vez mais cedo saem da escola, sustentam suas famílias, já aos 12-15 anos e quando atingem o mínimo sucesso se entregam aos seus repertórios de sexo, drogas e machismo.

Mas essa é uma história pra outro dia.

Naquela sexta de finados eu só via a falta de perspectiva, os pesadelos me confrontaram novamente se mostrando reais demais.

A cada passo dado por entre as novas vielas e aberturas da favela, vejo que sou uma parte menos fodida desse ecossistema que sangra, mas ainda grita por sobrevivência e direito à existência.

Ouvi em uma reunião recente o seguinte: “Você não pode reclamar que não teve oportunidade”. Transformo tudo em textos, encontros com outros jovens e busco novas perspectivas para seguir e puxar outros dali.

Enquanto acabo de ler “O Sol na cabeça” de Geovani Martins, me perco entre a leitura dos contos e a realidade vivida 24h por dia.

O momento que estamos vivendo, depois de 30 anos de democracia conquistada, misturado com a realidade que passa ao lado do meu quarto torna o livro real demais. A mistura da narrativa dos contos com a vivência visceral, deixava tudo à flor da pele, tanto que me questiono se realmente temos perspectiva o suficiente pra seguir.

Esse sol que bate na nossa cabeça e faz o suor arder os olhos, parece querer cegar nossa visão para além das barricadas e dos efeitos dos confrontos territoriais.

No dia em que recebi o livro, fui questionada se era seguro ter voltado para casa, por conta de todos essa rotina alarmante. Respondi que a gente ainda não tem saída e se adapta com as ‘novas regras’ de uma favela em constante transição. As “novas favelas’ que você não vê na TV mas que existem e resistem todos os dias.

O sol na cabeça é tão real que eu pude respirar cada conto. Quando não parecia vivenciado por mim, se misturava com narrativas que eu já tinha escutado de alguns que compartilham das mesmas experiências.

Quem acredita que não temos medo, não faz ideia do quão corajoso é ter medo e mesmo assim seguir. Seguimos porque se não acreditarmos que dará certo, é melhor ficar no meio do fogo cruzado e ver no que vai dar.

Não! Essa não é uma opção.” É o que falo todos os dias aos novinhos e novinhas que vivem compartilhando do meu wifi no quintal sem muro.

Seguimos e criamos estratégias acreditando que vai dar bom em algum momento, mesmo não acreditando completamente, mesmo sabendo que as diferenças são grandes e as oportunidades bem diferentes. Lembrando que já não bastava passar o ano inteiro perdendo provas e aulas pelas invasões, ainda precisamos driblar o camburão pra fazer e se concentrar durante as horas estipuladas para a prova do vestibular e do ENEM. Trememos na base e parece até que nossa história foi inventada por algum escritor muito louco e desavisado de que a vida deveria ser doce e leve.

Queria que esse fosse um roteiro desenhado milimetricamente, mas aqui é vida real e a vida real não para pra escolhermos a melhor cena ou colocar um dublê no lugar.

Estamos estilhaçados por dentro, mas seguimos!
Sol na cabeça é uma nova versão da literatura militante que aprendemos bem antes, com Afonso Henriques de Lima Barreto.

Estaremos juntos ocupando cada vez mais a Academia Brasileira de Letras e destruindo a distância que muitos dos intelectuais manteve do povo. Estamos criando um novo academicismo estrategicamente.

Estamos na linha de frente!