Nenhum negro a menos: atos inauguram tolerância zero ao racismo

Manifestações contra o assassinato de João Beto, um homem negro, dentro do Carrefour, acontecem desde a última sexta-feira (20) - Foto: Rafaela Felicciano/ Metrópoles

No último dia 19, João Alberto Silveira Freitas, ou João Beto, homem negro de 40 anos, foi morto asfixiado por dois seguranças brancos do supermercado Carrefour em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, após ser espancado e estrangulado. Mesma agressão que matou George Floyd, também com 40 anos de idade, no dia 25 de maio deste ano em Minneapolis, nos Estados Unidos.

Na mesma noite do dia 19, o vídeo do espancamento e estrangulamento, que durou apenas cinco minutos, já circulava nas redes sociais revoltando ativistas do movimento negro. No dia seguinte, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, diversos atos se espalharam pelas unidades Carrefour pelo país. As manifestações prosseguiram pelo final de semana e seguem acontecendo nesta segunda-feira, 23.

Rio de Janeiro – 20 de Novembro

“Foi durante a madrugada mesmo que se iniciaram as articulações para o ato”, contou Hevelton dos Reis, 29 anos, estudante de psicologia que esteve à frente da mobilização. Ativistas compõem uma rede ágil e cativante de atores sociais e, com isso, o protesto marcado para às 16h do dia 20 de novembro, no supermercado Carrefour da Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, conseguiu receber o apoio de artistas como: Nego do Borel, Tico Santa Cruz, Rafael Zulu, Patrícia Pilar, Pretinho da Serrinha e alguns cantores de rap.

Estiveram presentes no ato um número aproximado de 200 manifestantes. Entre eles, coletivos de favela e instituições do movimento negro como: Coletivo Papo Reto representado por Raull Santiago; Rede de Comunidade e Movimentos contra a Violência, na presença de Cuca da Rede; Coletivo Rocinha Resiste; Conexão Ubuntu; Frente CDD; Frente Preta (UFJF) e o Movimento Negro Unificado (MNU).

Destaca-se também o Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), fundado em 14 de agosto de 2020, com a finalidade de prestar assistência jurídica e judicial à população negra e periférica desprovida de representação. O IDPN estava presente na figura do advogado Djefferson Amadeus que aconselhava cada ação desenrolada dentro do Carrefour, afim de esquivar qualquer implicação incriminadora aos envolvidos.

Foto: Rafaela Felicciano/ Metrópoles

“O que não pode acontecer é o Carrefour continuar levando essa vida normal! Não faz sentido! O mínimo que eles poderiam fazer é fechar o mercado. E a gente está aqui para poder fazer isso”, apresentou Diego Martins, 36 anos, da Cidade de Deus. André Dread, ativista da Frente CDD e do Instituto Arteiros, ambos da Cidade de Deus, foi incisivo:

“Hoje é o dia de mostrarmos que este supermercado é assassino! Assassino e racista! Não faz sentido nenhum ele funcionar depois de uma barbárie dessa! Vamos travar tudo e isso não é crime! A gente tá aqui, no dia 20 de novembro, porque um irmão nosso foi assassinado! E isso não é um fato isolado, já foram quatro mortes!”.

Por mais de uma hora os manifestantes circularam pelo supermercado gritando palavras de ordem. No final da tarde, todos os caixas do supermercado empilhavam mercadorias e assim interrompidas as vendas no Carrefour. Sob gritos de “Carrefour racista!”, “racistas não passarão!”, “ei, Carrefour, vai ter que fechar, mataram nosso irmão, agora tem que pagar!”, o protesto seguia pelo início da noite.

Os ativistas então buscaram o gerente para concluir o ato e fechar, definitivamente, o supermercado, o que não ocorreu. Os funcionários argumentavam que não havia gerente na casa, e isso começou a irritar os organizadores do ato. Empilharam pneus, que estavam à venda no saguão de utensílios para casa e camping, na entrada do supermercado, até que, perto de 19h, finalmente ouviu-se pelo autofalante: “senhores clientes, por motivo de força maior estaremos encerrando nossos serviços de atendimento e a loja será fechada”.

Foto: Rafaela Felicciano/ Metrópoles

André Dread, ainda carregado de insatisfação, disse: “esperávamos mais bom-senso do Carrefour e do gerente que se recusava a atender. Mas cumprimos a função de romper com o estigma de baderneiros, foi um ato pacífico, foi um sucesso!”. O ativista lembrou também dos momentos de tensão devido à indiferença da gerência em atender-lhes. “A gente estava o tempo todo controlando os nossos para não ter descontrole, porque eles estavam apenas esperando um gatilho para agir com violência”.

São Paulo – 20 de Novembro

A tônica da morte de João Beto dominou as manifestações do dia 20 de novembro, em São Paulo. Por volta das 16h iniciou a concentração da 17ª Marcha da Consciência Negra na Avenida Paulista, em frente ao Museus de Arte de São Paulo (Masp), convocada por diversas organizações do movimento negro. Tradicionalmente, o ato termina nas escadarias do Teatro Municipal, perto do local de fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978. Desta vez seguiu em direção a unidade do Carrefour da rua Pamplona. A prova que a luta antirracista é uma caminho longo a se conquistar é o fato dos manifestantes terem sido recebidos com retaliação por moradores.

“Ontem eu achei um absurdo, né, o pessoal do alto dos prédios lá na Pamplona, jogando ovos, lixo e todo tipo de coisa pelas janelas em cima de nós! E isso não é falado! Era uma chuva de lixo em cima dos manifestantes! Isso não é falado!”, reclamou Marcelo Macário, 43, morador do Butantã. A área da Pamplona em torno do Carrefour é uma região nobre.

Às 18h45, aproximadamente, manifestantes entraram na unidade do supermercado sob gritos de “Carrefour racista” e “racistas não passarão”. Logo a gerência mandou fechar a loja e policiais prontamente se postaram para evitar a entrada. O arrebatamento da mobilização coletivamente partilhada de revolta antirracista, conveliu para um furor popular de modo a não conter ações agressivas contra a unidade Carrefour. Inicialmente prateleiras foram derrubadas, produtos lançados para todos os lados e um incêndio tomou parte de locais isolados do estabelecimento. Sob alertas dos ativistas para não saquearem, os manifestantes se retiraram quebrando ainda algumas vidraças do exterior da loja.

Marcelo Macário também reclamou da falta de direitos: “os policiais fecharam a passagem na Pamplona, impedindo o acesso ao Carrefour” e, ao reivindicar o direito de ir e vir, “o policial respondeu ‘aqui não tem direitos!’”. Macário rejeitou a atribuição de vandalismo às ações diretas no interior do estabelecimento do supermercado.

“É revolta, né, não é vandalismo. O sujeito toda vez que entra em uma loja é perseguido, é vigiado, é seguido por seguranças a vida toda, ele não aguenta mais, todo povo preto sente isso nos corpos, na pele a vida toda dele. Espancam, batem em irmãos nossos e a gente não tem direitos. Um ser humano foi morto violentamente e o pessoal está reclamando do quebra-quebra. O certo é ser omisso? Os opressores têm sempre razão?”.

Sábado, 21 de Novembro

A Avenida Paulista amanheceu com uma inscrição “VIDAS PRETAS IMPORTAM” em frente ao MASP realizada por artistas na madrugada e com aval da prefeitura de São Paulo.

Foto: Bruno Santos/ Folhapress

Durante a tarde do sábado 21, foram registrados atos, em memória a João Beto, nas cidades de Campinas, Piracicaba, Taubaté e São José do Rio Preto no interior de São Paulo. Pelo país foram feitos protestos em Porto Alegre (RS), Belo Horizonte (MG), Campo Grande (MT), Manaus (AM), Recife (PE), Curitiba (PR), Goiânia (GO), Brasília (DF) e Vila Velha (ES).

Domingo, 22 de Novembro

As manifestações antirracistas continuaram. No Rio de Janeiro, aconteceram atos às 11hs em Campo Grande, no Carrefour na Estrada das Capoerias, nº 355. Às 14h, os moradores da região de Niterói e São Gonçalo, protestaram no Carrefour de Neves. Por volta das 14h30 os protestos começaram na unidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Às 15hs, ativistas da Zona Norte do Rio de Janeiro se encontraram no Carrefour do NorteShoping.

Segunda, 23 de Novembro

Nesta segunda, já foi confirmado, até o momento, manifestação na unidade do Carrefour em Belford Roxo, Baixada Fluminense, às 16h.

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