Na paz dos cemitérios

Crédito: Reprodução internet.

O céu amanheceu nublado, o ar rarefeito como se alguma coisa ofuscasse a beleza do sol da manhã. “O céu está de luto”, pensei. Noite passada, riamos enquanto fazíamos o pão do dia seguinte, mesmo com dor e cansado por ter que estudar e trabalhar, vale tudo pela sobrevivência. A esperança de um futuro melhor me mantém focado.

Por volta das 23h30, estava “na fiscal”, favela de Manguinhos, quando ouvi tiros ao longe. Fiquei tenso, como se soubesse que algo ruim estava pra acontecer. Mas já tinha acontecido e eu só iria saber ao sair da padaria uma hora depois.

“Mataram um menino da igreja”, falou uma garota revoltada, que eu não conhecia. Ouvi tiros próximos. Meu coração acelerava e eu entrei no primeiro beco que encontrei. Nessa hora, eu sei que sou um alvo. A bala que chega não é perdida, ela é endereçada e o remetente é o Estado. O carteiro veste uma farda cinza e carrega um fuzil que é capaz de rasgar uma pessoa como quem rasga papel.

Quase saindo no beco do jornaleiro, em frente ao Colégio Clóvis Monteiro, na avenida dos Democráticos, vejo um garoto andar em minha direção e dizer que a polícia estava vindo. “Tá vindo muito polícia!!”, falou.

Mesmo assim, sigo em frente, porque não quero voltar pelo caminho contrário. Caminhar pelo beco escuro é perigoso. Algumas garotas amontoadas estão conversando entre si, revoltadas. Então, escuto o comentário da morte atentamente. Mas sou interrompido por um grupo de policiais que aponta o fuzil e nos manda sair da frente. O ódio dentro de mim cresce, “filhos da puta, só trazem violência pra cá.” Caminhei pela rua Tenente Abel Cunha e em frente ao supermercado Rede Economia tinha mais um grupo de policiais reunidos no meio de três viaturas. Dou a volta pela rua da Batata e ao pegar a avenida novamente, vejo um ônibus queimado – que depois soube foi em protesto pela morte do rapaz. Matheus, seu nome. Não o conheci, mas fui informado de que vinha da igreja quando foi alvejado pelos PMs que, segundo eles, atiraram no suspeito, sem terem se informado antes se realmente a pessoa estava devendo ou não.

O genocídio ao pobre e preto é implícito só a quem não vive no país, porque aqui o método policial é explicitamente racista. Sei que tem uma mão por trás. PM não atira sozinho. Sei que outra mãe vai ter noites mal dormidas pela perda do filho que morreu antes de adoecer. Morreu antes de completar 25 anos. Morreu antes de realizar os planos que tinha de casório com a namorada que, com certeza, ficou traumatizada, pois o rapaz morreu após ter ido deixá-la em casa, depois do culto que tinha dirigido em sua igreja.

Quantos de nós teremos que morrer pra saciar a sede de sangue do Estado genocida? A mídia, como sempre, fazia o trabalho de tentar justificar a morte do rapaz pra tirar o real culpado pela execução do jovem, que teve os sonhos findados pelo pesadelo do porco fardado. Esse demônio que só vem pra fazer mãe chorar.